A invasão do Capitólio incitada pelo ex-presidente Donald Trump a partir da farsa da fraude eleitoral, foi descrita, por muitos jornalistas e analistas políticos, como o maior atentado à democracia dos/nos Estados Unidos. O acontecimento supostamente excepcional na história dos Estados Unidos foi comparado a algo rotineiro no cenário latino-americano.
A invasão levou o ex-presidente George W. Bush a associar as imagens de caos resultantes àquelas típicas de “uma República de bananas”. Tais analogias foram rebatidas pelo ex-secretário de Estado, Mike Pompeo, quem afirmou: “Essa calúnia revela um entendimento equivocado das Repúblicas de bananas e da democracia nos Estados Unidos”.
“República das bananas”
Embora discordando entre si quanto à pertinência da comparação do episódio em relação àqueles que têm lugar na América Latina, Bush e Pompeo empregaram o termo “República das bananas” no seu sentido pejorativo usual. O termo foi cunhado pelo escritor estadunidense conhecido pelo pseudônimo O. Henry no conto O Almirante, no início do século XX, para se referir à Anchuria, um país fictício inspirado em Honduras, para onde o autor fugiu depois de ser acusado de desfalque bancário.
Desde então, o termo alcançou maior abrangência, passando a designar países latino-americanos com instituições políticas instáveis, dominados pela corrupção, pela violência e por uma situação de profunda dependência econômica internacional.
A “República das Bananas” alude, nas falas de Bush e Pompeo, a um lugar distante metaforicamente dos Estados Unidos, de decadência institucional e moral, supostamente estranho à democracia norte-americana, que se projeta no mundo como sólida e exemplar. De fato, a democracia dos Estados Unidos tem arrogado para si a posição de norma para as demais democracias do continente, tidas como frágeis e pouco institucionalizadas. Os desvios, como o cubano ou venezuelano, são punidos com não reconhecimento, bloqueios, sanções e suspensão de instituições internacionais.
O que a narrativa de Bush e Pompeo silenciam, contudo, é que a história de instabilidade institucional, de brutalidade e de golpes na América Latina não é uma história à parte da norte-americana, não é a história dos Estados Unidos ao avesso, mas é parte central da sua história.
Á tradicional política externa dos Estados Unidos
O autogolpe de Trump é familiar porque nos remete à tradicional política externa dos Estados Unidos de fomento a políticas antidemocráticas, de desestabilização política e econômica na América Latina. Abundam exemplos através da história da América Latina de intervenções militares norte-americanas para derrubada de governos contrários aos seus interesses econômicos e de segurança, de assistência militar e econômica para perpetuação de regimes autoritários ou, ainda, de incentivo a grupos de oposição para deposição de governos constitucionalmente eleitos.
Se levarmos em conta esta outra história dos Estados Unidos como potência imperialista na América Latina, a invasão do Capitólio não causa tanta estranheza. Diferentemente, ela pode ser vista como resultado de um efeito boomerang, nos termos colocados por Aimé Césaire ao se referir à experiência nazista. O poeta antilhano coloca que antes de serem vítimas do racismo com o advento dos regimes nazifascistas, os europeus foram cúmplices, pois toleraram, legitimaram e absolveram práticas racistas nos domínios coloniais antes que estas lhes impactassem.
A pergunta que fica é: até que ponto os Estados Unidos também não foram cúmplices de golpes, da destruição de ecossistemas, da produção de desigualdades na América Latina antes que o golpe trumpista lhes impactasse? Ou seja, é como se a incitação aos golpes, prática tão íntima à política externa dos Estados Unidos para América Latina, tivesse inadvertidamente migrado para dentro do território norte-americano. Longe de ser uma aberração ou anomalia na história dos Estados Unidos, tanto o fomento aos golpes como a racialização da América Latina que os embasou, estão firmemente inscritos na história do país.
Uma América estreita, branca e heteronormativa
Nos contornos racistas da imaginação de Trump e dos seus partidários, os pactos democráticos não deveriam se estender a todas as Américas. A narrativa trumpista de tornar a América grande outra vez equivalia, contraditoriamente, a apequená-la, a defender uma América estreita, branca e heteronormativa, a tentar combater com todas as forças a latinização da América.
Ainda que o ex-presidente não tenha conseguido viabilizar seu principal projeto político de construção de um muro “físico impenetrável” separando as fronteiras dos Estados Unidos e do México, norte-americanos foram convocados e investidos de autoridade pelo ex-presidente para corporificarem muros nos seus discursos e práticas cotidianos. O confronto se transformou na tônica da vida política, resultando no engessamento das tendências existentes de polarização ideológica e de racismo institucional. Crianças filhas de imigrantes e refugiados foram separadas dos seus pais e colocadas em gaiolas. Tweets presidenciais movidos por ódios contra minorias étnico-raciais, ora acusavam negros e imigrantes latino-americanos pelos crimes violentos nos Estados Unidos, ora convocavam o México a pagar pelo muro fronteiriço.
Na Era Trump, os limites e contradições da democracia dos Estados Unidos que foram, em parte, exportados para os seus “quintais” ao longo dos séculos XIX e XX, mantendo a ilusão da excepcionalidade da sua democracia, ganharam visibilidade e dramaticidade, atingindo sua casa principal, o Congresso. A invasão do Capitólio foi uma cartada temerária da América branca contra outras Américas, afro-americanas, latinas, chicanas, indígenas, que foram sistematicamente alvejadas tanto pelos caudilhos do Sul como do Norte do continente.
Foto de Blinkofanaye em Foter.com / CC BY-NC
Autor
Doutora em Relações Internacionais. Professora e ex-diretora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio. Pesquisadora do CNPq e do projeto GlobalGrace (Global Gender and Cultures of Equality). Diretora do BRICS Policy Centre (2023-2025).