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A linguagem como instrumento de luta pelos direitos humanos na América Latina

Em março de 2023, as Madres de la Plaza de Mayo marcharam pelos 40 anos do fim da ditadura argentina. Elas frisam que o ato é uma “marcha”, não uma “ronda”, como começou a ser popularmente conhecida. A linguagem, nesse e em muitos outros casos, importa, e é um instrumento poderoso para a proteção dos direitos humanos.

As Madres são a entidade mais conhecida dentro e fora do país, e o momento inicial de sua auto-organização coincide com os momentos mais sombrios da ditadura argentina. “Não queremos chamar de ‘ronda’ o que chamamos de marcha. Porque ronda é rondar sobre o mesmo, mas marchar é marchar fazendo algo”, afirmam elas.

Podemos destacar a característica performativa da “marcha”, segundo análises da linguagem discutidas em trabalhos precursores como os de J. L Austin e H. Pitkin sobre o assunto “performar”. O ponto a ressaltar – da linguagem em ato, do ato de fala – aqui toma os contornos da luta pela efetivação dos direitos humanos, pelos desaparecidos, contra a impunidade dos oficiais perpetradores das injustiças, e tornava-se assim um repertório relevante da linguagem em uso para todos os movimentos subsequentes na América Latina, até os presentes dias.

As Madres de Mayo têm sua origem ainda no final dos anos 1970, e desenvolvem um conjunto de ações com o objetivo de encontrar e identificar as crianças sequestradas durante a última ditadura militar argentina. De acordo com a pesquisadora Rita Duarte, as crianças que não eram assassinadas, eram entregues para adoção em processos permeados por ilegalidades e violências. Um desdobramento em consonância das primeiras, a organização das avós – Abuelas, se forma a partir de 1994, e é hoje uma das mais ativas.

Em continuidade, agora os H.I.J.O.S., a partir de novos repertórios e ações chamadas escraches (denúncias públicas e barulhentas de torturadores e assassinos conhecidos que se encontram em liberdade), também se caracterizam pela promoção de mudanças significativas, mesmo depois do retorno da democracia.

A disputa na cena política argentina demanda que a história seja revisitada, se engaja constantemente pela reparação, tendo como suportes o não-esquecimento e o fim da impunidade. Em todos os casos, a luta dessas mulheres insere-se no espaço público. Nos arquivos, nas ruas, nos congressos nacionais, nas escolas, onde são chamadas a estar, conduzem suas denúncias e reiteram o direito de memória aos seus mortos(as)/desaparecidos(as) e, em especial, à responsabilização política dos Estados em relação a esses crimes. O hoje Museu Sitio de Memoria ex-Esma, é um dos mais recentes espaços e conquistas do movimento.

O paradoxo da anistia

Já no Brasil, o final da ditadura tem como contexto chave o paradoxo da anistia, e a Constituição de 1988. Os governos pós-transição, experimentaram complexas dinâmicas para a definição, e posterior elaboração e implementação de direitos através de políticas públicas. No caso dos movimentos sociais, além de sua conexão com a promoção e defesa de agendas para as políticas públicas, ocorreram processos de memória, verdade e reparação no país.

Se pensadas as ditaduras no Brasil e na Argentina, por exemplo, o filme Argentina, 1985 é oportuno e chegou em boa hora no ano de 2022, quando as eleições mais difíceis da história da redemocratização no Brasil estiveram cercadas de ameaças de golpe militar e o então presidente afirmava categoricamente não confiar nas eleições do mesmo país que o elegeu em 2018. A atitude antidemocrática teria efeitos nefastos, como atestam desde a ameaça de bomba às vésperas do Natal até a invasão das sedes dos três poderes.

Consideradas as histórias dos dois países, o julgamento dos militares envolvidos em crimes de Estado aproxima o passado de anistia (e impunidade dos militares e policiais) no Brasil, e a estabilidade democrática (apesar de intensa crise econômica) que a Argentina concerta. Um resultado concreto desta comparação é entender como não faz parte da linguagem em uso dos hoje presidenciáveis na Argentina qualquer menção que se assemelhe ao “bandido bom é bandido morto” que assistimos no passado recente no Brasil. Infelizmente, a chegada do Javier Milei e seu uso de expressões como “tremam esquerdistas de merda”, não permitem falar mais da excepcionalidade Argentina, ou, pelo menos, chama nossa atenção a correlação entre as tramas de violações do passado e sua possível atualização no presente, se lembrado o caso brasileiro.

O julgamento retratado no filme traz especial atenção ao relato das vítimas: aos familiares que, apesar da imensa e irreparável perda dos entes queridos, trazem à cena pública sua luta pela verdade, pela justiça, pela reparação e não repetição dos crimes do Estado contra seus cidadãos e cidadãs, suas famílias e entes queridos. Além disso, o que ocorreu no país vizinho de modo inédito na América Latina pode ser comparado ao julgamento de Nuremberg, por trazer à cena pública internacional um questionamento crucial sobre como tratar os que dizem matar, torturar e exterminar por estar “cumprindo ordens” como “bons cidadãos”.

Impunidade como ameaça

O que significou a questão militar na Alemanha, no Brasil e na Argentina, se entrelaça de modo sombrio à persistência de apoiadores do nazismo e da violência de Estado ainda em nossos dias.

A linguagem dos direitos humanos ensina que a impunidade de agentes de Estado é um dos principais fatores de ameaça às democracias. Tal fato se assenta não apenas nos relatos das vítimas e movimentos, mas nos documentos e Comissões da Verdade. Apenas em 2022, 6.429 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Testemunhamos um aumento na letalidade da ação policial nos últimos anos e também um crescimento no número de mulheres que se engajam politicamente contra as violações provocadas pelo Estado. Assim, segundo a cientista política Débora Quintela, é plausível prever que, não havendo uma mudança em termos de segurança pública nas grandes cidades brasileiras – e a expectativa atual é que a violência institucional só aumente–, a tendência é que o movimento de mães de vítimas de violência policial se expanda e se solidifique enquanto ação coletiva. Infelizmente, a cada nova vítima, temos também uma nova mãe ultrajada, uma ativista em potencial.

Entender a temática dos direitos como um processo histórico e em disputa nas arenas políticas nacionais e suas interfaces internacionais, pode auxiliar a compreender melhor as dinâmicas nacionais e seus pontos de interseção. Apurar abusos, buscar a verdade, honrar as memórias das vítimas e não permitir que violências se repitam são formas de cultivar valores democráticos em sociedade. Estejamos atentos à linguagem em uso, aos atos de fala das mães e entes queridos que lamentam suas perdas e pedem por justiça. A reivindicação de direitos humanos é relevante para a sua compreensão constituinte nas demandas coletivas na política, para promover justiça para quem sofreu ou sofre injustiças, na recuperação de memórias, da verdade, da justiça e da não-repetição da violação de direitos.

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Profª. de Ciência Política da PUC-Rio e do Programa de Pós-Graduação em C. Sociais da UFRRJ. Doutora em C. Sociais (PUC-Rio). Membro da Rede de Politólogas #NoSinMujeres.

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