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A preocupante presença dos EUA na política migratória brasileira

O governo dos Estados Unidos intervém na implementação de políticas públicas no Brasil, ao financiar e estruturar serviços de assistência aos migrantes, limitando o acesso a essa assistência a determinadas nacionalidades e segmentando o acesso aos seus direitos.

O governo dos Estados Unidos (EUA) possui uma extensa lista de participações em golpes, desestabilização de governos democraticamente eleitos e sabotagem ativa de políticas públicas de caráter emancipatório na América Latina. Frequentemente, acordos de cooperação e de fomento ao desenvolvimento, celebrados por agências internacionais do governo, são utilizados como instrumento de corrosão dos processos democráticos e de direcionamento das ações dos governos desses países de maneira a beneficiar aos interesses estadunidenses e do grande capital internacional.

O principal exemplo, de muitos, está na Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) que desempenhou papel reconhecido na estruturação dos aparatos de repressão que sustentaram as ditaduras por todo o continente. No Brasil, os contestados acordos entre o Ministério da Educação e Cultura e o USAID, celebrados na década de 1960 durante a ditadura militar, previam cooperação entre a Agência e o governo brasileiro para a reforma do ensino superior do país. Denunciados à época como símbolos do aumento da presença dos EUA no Brasil, os acordos representavam, por um lado, um retrocesso educacional, retirando disciplinas como Filosofia da grade curricular, além da reduzir a carga horária de disciplinas como História.

Por outro lado, nas coxias do Estado brasileiro, ocorria, no âmbito do convênio com o Ministério de Educação e Cultura (MEC), a implementação de uma assessoria para treinamento e modernização técnica das corporações policiais, com assessores policiais estadunidenses treinando as forças de repressão brasileiras – programa seminal da Operação Condor, portanto.

Os assessores policiais dos EUA estavam presentes no Brasil desde o governo João Goulart, e Frank Jessup, chefe da equipe de assessores do programa da USAID à época do golpe militar de 1964, comemorou, em telegrama a Washington, que as autoridades policiais dos oito estados onde as forças estadunidenses estavam presentes aderiram ao golpe. Jessup também celebrou, à época, que a presença dos assessores policiais dos países não foi questionada, em momento algum, pelo governo de Goulart ou pela esquerda brasileira.

Migração venezuelana

De 2019 em diante, a presença da USAID passou novamente a ser uma constante na América do Sul, centrada especialmente na questão venezuelana. Primeiro, participou da desastrada operação de envio de “ajuda humanitária” para a Venezuela em apoio a Juan Guaidó, na época reconhecido pelos EUA enquanto presidente daquele país. Relatório posterior mostrou que a operação “não seguiu princípios humanitários”, e que funcionários foram orientados a alinhar as decisões da operação “para reforçar a credibilidade do governo provisório”.

O governo paralelo de Guaidó recebeu US$ 158 milhões da USAID a título de financiamento do “governo venezuelano” em função de convênio firmado em outubro de 2019 para estabelecimento de “projetos de desenvolvimento”. Desde 2017, o governo dos EUA já destinou US$ 656 milhões para auxiliar venezuelanos deslocados ou para projetos de desenvolvimento que envolvam venezuelanos – desses, US$ 437 milhões foram empenhados pela USAID.

No Brasil, a presença recente da USAID esteve ligada fundamentalmente ao apoio para projetos junto a migrantes venezuelanos executados por organizações da sociedade civil sob a égide da razão humanitária.

O projeto Oportunidades, com orçamento de US$ 4 milhões, tem como objetivo declarado facilitar o acesso ao emprego formal e a oportunidades de geração de renda de migrantes venezuelanos. Foi lançado em parceria com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) em janeiro 2020 – pouco após o governo de Jair Bolsonaro adotar o lema “Socialismo exclui, Brasil acolhe” para a Operação Acolhida, montada para gerenciar o fluxo de venezuelanos na fronteira norte do Brasil e executada pelas Forças Armadas.

Esse fenômeno também coincide com o crescente interesse de militares brasileiros e de líderes da extrema direita brasileira pelo tema da migração. No Brasil, a Frente Parlamentar Mista em Apoio e Acolhimento de Migrantes Transnacionais e Refugiados abriga próceres da extrema direita, como o general Eduardo Pazuello e a deputada Carla Zambelli.

Mesmo após o fim do governo Bolsonaro, a presença de uma gama variada de entes ligados ao governo dos EUA no financiamento, implementação e execução de ações ligadas à política migratória brasileira continua a chamar a atenção. Durante o governo Lula, processos de participação popular na elaboração de políticas migratórias têm sido financiados com o apoio não apenas do USAID, como no caso das Conferências Livres de Juventude e Migração, mas também do Escritório de População, Refugiados e Migração, ligado ao Departamento de Estado dos EUA. Este foi o caso da Conferência Estadual de Migrações, Refúgio e Apatridia do estado da Bahia.

Também a Fundação Panamericana para o Desenvolvimento (PADF), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), esteve entre os apoiadores da Conferência Livre sobre Inserção Socioeconômica e Promoção do Trabalho Decente para Migrantes, Refugiados e Apátridas. A OEA esteve recentemente envolvida na desestabilização política da Bolívia, quando divulgou relatório fraudulento que questionava a lisura do processo eleitoral, resultando no governo de Jeanine Áñez, condenada pela Justiça boliviana por ter organizado um Golpe de Estado no país em 2019. Por fim, também a Embaixada dos EUA no Brasil tem figurado entre os financiadores de serviços voltados a migrantes.

Presença preocupante

A presença de um governo estrangeiro na organização de processos de consulta, elaboração e execução de políticas públicas é preocupante em vários sentidos, em especial se as relações têm sido historicamente estruturadas de maneira abusiva e assimétrica.

Primeiro, indica a presença de uma crescente política de externalização das fronteiras, cujo objetivo é desenhar e executar a política migratória dos EUA nos países da América do Sul, a despeito das necessidades locais. A recente migração em massa venezuelana é efeito também de ingerências pregressas dos EUA em países soberanos – como é a do Haiti, sem que haitianos mereçam a mesma atenção e orçamento.

Além disso, reforça a instrumentalização da migração para propósitos geopolíticos – e ideológicos – que envolvem uma abordagem extemporânea de teor anticomunista para a região e para o tema da migração. No Brasil, esse processo acontece às custas de uma potencial cooptação da produção da política migratória em um momento particularmente fecundo, quando duas Políticas Nacionais para migrantes estão sendo elaboradas – uma abrangente, e outra de saúde.Finalmente, o governo dos EUA está envolvido na execução de políticas públicas no Brasil por meio do financiamento e estruturação dos serviços de assistência a essa população, restringindo o acesso à assistência a determinadas nacionalidades e segmentando o acesso a direitos, e, por fim, coletando e gerenciando os dados dos migrantes. Este é um movimento para ser observado de maneira crítica e próxima.

Autor

Professor da Universidade de Brasília. Doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos. Membro da Fundação Wenner-Gren e ex-membro da Plataforma de Ciências Sociais em Ação Humanitária da Universidade de Sussex. Fundador e membro da coordenação da Frente Nacional de Saúde do Migrante (FENAMI).

Psicólogo especializado em Direitos Humanos e Ciudadânia no Contexto das Políticas Públicas (beca CAPES/CNPQ). Professor coordenador da especialização em Psicologia e Migração (PUC Minas Virtual) e doutorando pela FAPEMIG no Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas.

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