É visível que o mundo vive um momento difícil em muitos aspectos. Desde o ideal do Estado de Direito até mesmo os Direitos Humanos, a sensação que há é a de que existem mais esforços para manter o que algum dia já tivemos do que propriamente de alcançar avanços. Retrocessos, portanto, estão mais presentes e mais nítidos do que o “sonho” de um século XXI mais harmônico e progressista.
Este contexto também afeta a democracia, não só como conceito, mas como valor. Há uma disputa pela sua definição por grupos que não exatamente podem ser classificados como democráticos em sua essência. O mero uso da palavra “democracia” ou o adjetivo “democrático” pode indicar outro sentido quando analisado mais de perto, considerando que em tempos de pós-verdade, são diversas e constantes as tentativas de moldar o ideal democrático para que sirva a outros fins que de democráticos não têm nada.
Neste ponto, o negacionismo possui um papel fundamental. James R. Schlesinger, economista e político norte-americano, afirmou que todos e todas temos direito às nossas opiniões, mas não à nossa própria versão dos fatos, e esta frase nos ajuda a entender que o mundo de hoje pode estar muito mais baseado em fatos particularmente contados do que dos que efetivamente ocorrem. Contrariando o que se possa pensar, uma mentira que seja repetida muitas vezes não se torna verdade.
É aqui, também, que se pode pensar no papel das ideologias no declínio da democracia, pois ao disputar o conceito, perde-se o valor e a essência democrática da política. Direitas e esquerdas entram em conflito direto na tentativa de tomar para si a qualidade de “democrático”, mas falham na defesa verdadeira dos valores ao não condenar os ataques à democracia que vem se intensificando no mundo.
A seletividade em classificar estes ataques como antidemocráticos e que se baseiam em princípios ideológicos na política vem causando efeitos colaterais de deslegitimação das forças políticas perante a sociedade, já descrente dos ideais democráticos que prometeram, em algum momento da história, a paz, a igualdade e o desenvolvimento dos povos.
Além disso, percebemos que direitos humanos básicos vêm também sendo ideologizados e disputados, criando situações até um tanto quanto contraditórias, como ocorre com a liberdade de expressão, de manifestação e outras liberdades. O liberalismo, portanto, parece já não ser bem compreendido neste contexto tão dúbio que o confunde com tudo, menos com o que ele realmente é. Por outro lado, a igualdade também vem sendo alvo de interpretações duvidosas que a descaracterizam como tal, pois após a suposta consolidação de um conceito de igualdade material, parecem surgir correntes nostálgicas da sua mera formalidade, pregando um mundo em que “todos somos iguais”, quando claramente não é assim.
Neste debate, alia-se também a estratégia da utilização de mecanismos que se dizem democráticos para fins diversos, como consultas populares legitimadas somente pelo procedimento. Aqui, parlamentos que amparam governos possuem uma função primordial de monopolizar um discurso que se faz democrático, mas que não passa em um simples teste de integridade. Processos eleitorais e referendos que culminam no resultado desejado antes mesmo de terminarem, mantendo “as coisas como estão” por tempo que não se sabe se indeterminado ou não, tornaram-se mais comuns do que deveriam.
Porém, deve-se mencionar que mesmo na utilização de mecanismos democráticos de consulta, quando ainda há espaço de manifestação por parte da sociedade, estes momentos converteram-se em oportunidades de expressão do descontentamento social diante do poder. Baixos índices de participação, em alguns casos nem chegando à casa dos dois dígitos, demonstram as fraturas expostas em um mundo de conflito.
E falando em conflito, é necessário também citar o caso dos processos eleitorais violentos, que não terminam com a divulgação dos resultados. Em diversos contextos, nota-se que perdemos a capacidade de aceitar derrotas, tornando as eleições praticamente intermináveis e apelando para ferramentas diversas para superar e/ou eliminar a força política que restou vencedora. Canais importantes de controle do poder são mal-usados para obter um resultado que não foi o das urnas, criando um “3° turno” muitas vezes atentatório à democracia, mas não condenado pelos seus aliados políticos.
A democracia não pode ser a conveniência de amigos ou a mera convergência ideológica de grupos. Ela não deve ser exaltada pela exceção, mas deve constituir o mais trivial em nossas vidas. A prática democrática deve ser alimentada nos mais variados contextos sociais, não se limitando à política formal institucional. A aceitação dos valores democráticos deve pautar o exemplo de autoridades, mesmo quando estes desafiem suas relações políticas.
É preciso defender a democracia mesmo quando ela não nos agrada. Inclusive por isso ela deve ser defendida. É plenamente possível defender um conceito de democracia que resiste às ofensivas que vêm sofrendo nos últimos anos. A resiliência democrática nos mostra que nem tudo está perdido mesmo com toda esta crise, e que assumir o conflito como única forma de participação pode nos levar a um caminho sem volta como sociedade.
Pode parecer utópico, mas a defesa da democracia possibilita o regresso de tempos prósperos aos Direitos Humanos, em um mundo em convulsão. É por isso que devemos ser intransigentes em relação aos valores democráticos, não sendo seletivos em sua defesa e nem aceitando esta seletividade de governos e de autoridades. É preciso realmente defender a democracia, doa a quem doer. Pode parecer óbvio o que se prega neste texto, mas em tempos como os atuais, o óbvio também deve ser dito – e defendido.
Autor
Doutorada em Ciências Jurídicas e Políticas pela Univ. de Salamanca. Pós-doutorada na Univ. Externado (Colômbia) e na Pontifícia Univ. Católica do Paraná – PUCPR (Brasil). Coordenadora geral da organização Transparência Eleitoral Brasil.