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A resiliência das democracias latino-americanas

Co-autor Hugo Borsani

A preocupação com a estabilidade e o funcionamento das democracias latinoamericanas se viu aumentada nos últimos anos ante a manifestação de diferentes tipos de eventos com alto impacto político: grandes revoltas populares seguidas de forte repressão, renúncias e impeachments de presidentes, cooptação de instituições do Estado, ameaças de militares, entre outros. Porém, a maioria das democracias da região tem respondido a esses desafios e impasses políticos a través dos mecanismos institucionais vigentes ou com reformas que procuram viabilizar saídas à conflitividade política e social.

Esses desafios têm sido analisados, muitas vezes, como riscos à democracia ou, inclusive, como indícios de ruptura do sistema. Contudo, a pesar da redução da sua qualidade em alguns casos, a democracia tem sido resiliente e encontrado formas de contornar os obstáculos que se lhe apresentam, afastando as rupturas institucionais outrora tão presentes na região.

Eleições confiáveis e reforma constitucional

Não obstante os episódios de explosão social que afetaram a vários países em 2019, em todos eles a insatisfação da cidadania foi finalmente canalizada pela via legal e com a manutenção das eleições como método de escolha dos governantes e demais representantes políticos.

No Equador, dois anos depois da violenta explosão social contra polêmicas e impopulares medidas do ex-presidente Lenín Moreno, um processo eleitoral transparente e exemplar concretizou uma alternância política pacífica.

Foi também a través de um processo eleitoral confiável que a Bolívia reencontrou a legitimidade democrática que pôs fim ao processo de deterioro institucional que tinha se iniciado com a inconstitucional terceira candidatura do ex-presidente Evo Morales, seguida da explosão social de 2019 –a raiz de um confuso escrutínio eleitoral-, a renúncia de Morales e uma polêmica sucessão presidencial.

No caso do Chile, onde os protestos foram mais intensos e se estenderam por mais tempo, a mobilização dos cidadãos impôs uma reforma constitucional via eleição de uma assembléia constituinte, algo que não estava nos planos das lideranças políticas. A aceitação dessa demanda por todo o sistema político, e sua rápida implementação, fortaleceu o caminho da legalidade institucional como a opção fundamental para encontrar saídas à crise política e social que atravessa o país.

O impeachment como mecanismo de resolução de conflitos

Assim como as revoltas populares, os processos de impeachments de presidentes são indicadores de crises políticas relevantes e sua reiteração em alguns países da região suscitou, também, preocupação pela estabilidade da democracia. Porém, esses processos tendem a funcionar mais como uma via institucional de resolução de conflitos que como um fator de crise.

Embora os regimes presidencialistas pressuponham um mandato fixo do chefe do Executivo, em algumas situações, seja por falta de apoio legislativo, apoio popular ou, principalmente, por ausência de ambos, os presidentes podem ser desafiados com um pedido de impeachment. As normas constitucionais não sempre delimitam de forma específica o tipo de crime passível de imputação, o que abre margem para que, em situações de confronto entre os poderes do Estado, se inicie um processo de impeachment, especialmente quando a oposição conta com a maioria do Legislativo e o presidente com muito baixa popularidade. Na prática este procedimento tem funcionado como o voto de desconfiança dos regimes parlamentaristas, quando o primeiro ministro já não conta com apoio legislativo, mas que formalmente não existe no presidencialismo.

Por se tratar de um juízo essencialmente político –quem vota pela culpabilidade ou absolvição do presidente são ossenadores e/ou deputados– a decisão depende, de fato, do apoio legislativo ao presidente. Nessas situações o impeachment é a ferramentas disponível nos sistemas presidencialistas para a resolução dos impasses entre os poderes Executivo e Legislativo, derivados da falta de respaldo político aos presidentes. Mais que “golpes parlamentares”, como as vezes tem sido caracterizados, são a resposta do sistema político a presidentes que não conseguem atingir, ou manter, uma base legislativa e/ou apoio popular suficiente para fazer frente a denuncias de ilegalidade, como aconteceu com os presidentes Kuszinsky e Vizcarra no Peru e com Rousseff no Brasil.

Porém, quando a destituição do presidente não contou com apoio popular significativo, como no caso de Vizcarra, no Peru, o impeachment provocou uma forte reação de parte da população, ampliando a crise política, que obrigou à renúncia do sucessor designado pelo Legislativo para completar o mandato presidencial, sendo necessária uma nova designação.

A cooptação das instituições do Estado e a pressão dos militares

Apesar da capacidade de resiliência da democracia, importantes desafios continuam presentes, especialmente em condições de alta polarização política. Em alguns casos esses desafios podem adquirir dimensão de risco. A cooptação das instituições de controle do Estado pelos governos e a pressão dos militares constituem dois desses casos.

Um exemplo de cooptação de uma instituição do Estado pelo governo é a recente destituição dos membros da Sala Constitucional da Corte Suprema do El Salvador pela Asembleia Legislativa, que conta com ampla maioria do partido do presidente Bukele. Por sua parte, Nicarágua e Venezuela são dois exemplos de cooptação consolidada das instituições do Estado pelos respectivos governos.

Indicadores do segundo dos desafios mencionados –a ingerência ou pressão militar– foram observados recentemente no Brasil e no Peru. Neste último país, uma carta pública de militares reformados chamando a desconhecer um governo presidido por Pedro Castillo, tencionou o cenário político que nesse momento estava ainda sem definição do renhido resultado eleitoral.

No Brasil, as Forças Armadas estão no centro do debate público, tanto pela ampla presença no governo de Bolsonaro quanto pelas denúncias de corrupção que atingem a militares que integram o governo e pelo posicionamento corporativo que as Forças Armadas têm adotado com o objetivo de intimidar o sistema político e proteger seus membros.

Em tempos de crescente polarização política, os riscos à estabilidade democrática não estão ausentes. Pelo contrário, têm se manifestado de diferentes formas. Mas a maioria das democracias latinoamericanas têm demonstrado, até o momento, sua capacidade de resposta aos importantes desafios que vem enfrentando. Para essa resiliência tem contribuído a participação de atores políticos y sociais e a capacidade das instituições de amortizar os conflitos -embora muitas vezes de forma aquém do ideal-, assim como a própria continuidade democrática, pois, como vários estudos mostram, quanto maior a quantidade de anos em democracia, menor a probabilidade de ruptura institucional.

Hugo Borsani é cientista político. Professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF (Brasil). Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro – IUPERJ (atualmente IESP/UERJ). Pós-doutorado no Instituto de Iberoamérica da Universidade de Salamanca.

Foto de Liam Quinn no Foter.com

Autor

Professora da Univ. Federal Fluminense (UFF). Doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Suas linhas de pesquisa são partidos políticos, elites políticas e políticas públicas.

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