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Argentina: a agonia do regime de “status quo”

Após quarenta anos, o contraste entre as esperanças de ontem e a decepção de hoje explica, em boa medida, a ascensão de um "governo de opinião" que sustenta o presidente Javier Milei.

Hoje, o regime de status quo instaurado em 1983, que abriu as portas para a ilusão da democracia após a queda da mais atroz ditadura militar, agoniza. O regime de 1983 (uso esse termo em seu sentido mais amplo) atravessou duas frentes de emergência em 1989 e 2001, em um tempo estendido de desilusões progressivas.

A legitimidade democrática consentiu a alternância política, com seus momentos de sonhos e desesperanças, em um país que finalmente deu lugar à pobreza, à inflação galopante, à estagnação econômica, à degradação institucional, ao unitarismo fiscal, à desconfiança na política e à corrupção generalizada.

Após quarenta anos, o contraste entre as esperanças de ontem e a decepção de hoje explica, em boa medida, a ascensão de um “governo de opinião” (cerca de 56% dos votos) que sustenta o presidente Javier Milei. Momento oportuno para reexaminar as relações entre o poder e a opinião pública.

Esse triunfo eleitoral é o sinal da agonia de uma época, do fim de um tipo de regime, que será o ponto de partida para outro, até agora desconhecido, pois ainda não está claro quem o encarnará. Não é só um simples movimento pendular político, é a abertura de um abismo entre a economia, a política e a sociedade.

As eleições competitivas, com um forte significado operacional, produziram uma mudança transcendente de sinal político, como possibilidade de renovação das elites governantes do status quo. Também é verdade que as eleições têm um caráter simbólico e, como tal, não representam um mero ato de nomeação de governantes. Os símbolos fazem parte do universo de significados e, portanto, têm um valor funcional.

Se Milei venceu, não foi porque seus adversários desertaram do combate, mas porque, imbuídos da natureza desse regime, não conseguiram entender com precisão e certeza as demandas de uma vasta maioria, tanto no subsolo quanto na superfície.

Houve uma transformação gradual, talvez silenciosa, na cultura política dos argentinos, como forma de oposição ao fracasso de um regime de status quo, entendido em seu sentido literal: o estado atual em que as coisas se apresentam. Por certo, não é um programa amalgamado de ação pública, mas de uma espécie marcante de “regime de consenso”, mesmo que veja o mundo a partir de perspectivas diferentes. Assim, dentro dele, prevalecem as eternas rivalidades, as diferenças subjacentes e as reviravoltas muito acentuadas.

Os estilos políticos não foram os mesmos nas décadas anteriores a 1983, nem foram os mesmos desde então. O partido peronista jogou com a política dos extremos quase como um ponto de ruptura: Ezeiza, durante o retorno de Perón, a violência montonera, os três A’s. A polarização, o faccionalismo foram uma constante entre as oposições e as situações. O status quo não simboliza um regime homogêneo ou indestrutível. Tampouco todos os governos em exercício foram iguais em suas ações, responsabilidades, transparência e eficiência na gestão. Não há um julgamento único sobre esses anos, sobre a combinação do período.

Entretanto, há uma base comum que os engloba: “é o estado atual das coisas”. Esse regime de status quo não incluía nem se propunha estritamente a acabar com uma sociedade corporativa. O livro de Jorge Bustamante de 1988, A República Corporativa, continua notavelmente atual.

Milei é o presidente que desafia o regime de status quo. Nessa luta brutal, com sua personalidade excêntrica, abre um cenário de conflito em termos de intensidade e extensão que pode ser definido, por falta de algo melhor, como um “regime de antagonismo”, como um regime de inimizade. Uma política que destaca os extremos. Não sei qual será a nova ordem, mas há dois regimes rivais, o que ainda não morreu e o que não pode amanhecer. Entre os dois há uma ponte, que é o processo de transição entre um regime e outro. Nessa transição, é reforçada a crise de confiança entre a política tradicional praticada e o corpo social ansioso, ferido e reclamante. Assim, visualizam-se as causas endógenas, algumas mais decisivas do que outras.

Talvez a questão central seja como restabelecer as proporções entre o que deve permanecer e as mudanças a realizar. Milei é portador de um projeto utópico (além do ajuste e do déficit zero), irrealizável, anarcocapitalista, sem Estado, animado por um sistema social exclusivamente autorregulado pelos mercados.

Uma sociedade basicamente nova que se coloca fora do espaço e do tempo, embora agora, em um aprendizado acelerado, inserida na gestão do governo, faça uso do pragmatismo político. Se continuar nesse caminho, para governar deverá melhorar sua representação no Congresso, através de fortalecer alianças e de bons resultados nas eleições de meio termo. O anarco-capitalismo seria adulterado. Com a aprovação da Ley Bases e a delegação de poderes extraordinários, abrem-se novas questões sobre o futuro de sua administração.

Os desejos de mudança da sociedade argentina não parecem se encaixar no programa e na cosmovisão de Milei; em médio prazo, talvez encontremos uma resposta. É hora de revisar certezas e suspender muitas convicções de longa data. As representações dos que mandam suscitam desespero e as perspectivas se inverteram. A democracia é o único regime que trata as pessoas como seres livres.

*Texto publicado originalmente en Clarín

Autor

Doutor em Filosofia pela Universidade das Ilhas Baleares (Espanha); Diplôme d´Études Approfondies em “Études de l´Amérique Latine”, Option Sceinces Politiques (Paris III). Pesquisador e Professor de Teoria Política na Faculdade de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Nacional de Rosário.

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