A Argentina se encaminha a eleições com um nível de mobilização inusitado. A grande diferença obtida pela Frente de Todos nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), que, além de definirem algumas candidaturas em nível municipal e provincial, funcionaram como uma importante demonstração de vontades, gerou uma forte reação entre os partidários do situacionismo e entre aqueles que temem o kirchnerismo, e isso se materializou em forma de um nível de organização e mobilização que poucos esperavam.
Em 24 de agosto, uma multidão se deslocou ao centro da Cidade Autônoma de Buenos Aires, rumo a um ponto de encontro na emblemática Plaza de Mayo, em um evento que contou com a presença do presidente, que se aproximou para cumprimentar e conversar com os participantes, dando início ao que alguns definiram como “a rebelião dos mansos”, por envolver um setor da sociedade que costuma se manter à margem desse tipo de manifestação, embora guarde as lembranças das marchas de protesto contra o governo de Cristina Kirchner nos anos de 2012 e 2013.
Desse ponto de partida, o governo organizou um itinerário rigoroso de encontros populares em diferentes regiões do país, que contrastaram com a recepção pífia que encontrou no dia de sua posse, 10 de dezembro de 2015.
Paradoxalmente, um presidente enfraquecido por uma eleição adversa encontrou a força de centenas de milhares de pessoas nas ruas e chegou a um momento culminante no Obelisco, no sábado (19), quando foi registrada a maior presença de público nas ruas desde o final da campanha pelo retorno da democracia, em 1983.
O abalo sofrido pelo mercado financeiro com o resultado inesperado das Paso (em função da grande diferença a favor da frente oposicionista), com queda das ações e títulos argentinos, uma forte desvalorização do peso e grande desconfiança quanto ao programa de governo e as pessoas que formariam o hipotético gabinete de Alberto Fernández, fizeram reviver temores que infelizmente estão muito vivos na memória dos argentinos.
Por isso os bancos tiveram de trabalhar fora de seus horários habituais a fim satisfazer a demanda de muitos argentinos por dólares, já que eles temiam uma nova “pesificación” (a conversão de depósitos em dólares em depósitos em pesos, decretada pelo governo em 2002), preferiram não renovar seus investimentos de prazo fixo e fizeram todo o possível para fugir da moeda local.
O paradoxo de eleitores da Frente de Todos que não confiam na vontade e capacidade de seus líderes para evitar uma desvalorização maior do peso seria um tópico interessante para um especialista naqueles ramos de estudo que ficam entre a psicologia e a ciência social.
O que se poderia esperar de um segundo governo de Mauricio Macri, caso ele consiga reverter a desvantagem revelada nas Paso? Em primeiro lugar, haveria um forte impacto sobre as variáveis financeiras, uma recuperação nos preços de moratória a que caíram os títulos argentinos e um breque à constante saída de reservas que o banco central vem sofrendo desde 12 de agosto, apesar das restrições impostas em conjunto com o Ministério da Fazenda.
Para o mais, se espera uma continuidade das políticas externa, de segurança, de educação, de saúde e de defesa, e uma continuação da redução de um déficit fiscal que, na ausência de crédito internacional, parece ser uma das poucas ferramentas para escapar às restrições externas, um fenômeno frequente na história econômica argentina.
Qual seria o impacto se Alberto Fernández confirmasse os resultados de 11 de agosto e chegasse à presidência sem necessidade de um segundo turno na metade de novembro? Em princípio, a pressão quanto ao tipo de câmbio continuaria, assim como a pressão dos diferentes agentes econômicos para conhecer qual seria o programa econômico de um governo dele.
o atual governo tentaria evitar uma desvalorização maior da moeda enquanto o governo eleito pressionaria para que esse “trabalho sujo” fosse realizado por Mauricio Macri.
Os incentivos nesse caso não encontrariam pontos de contato entre o situacionismo e oposição, e por isso o atual governo tentaria evitar uma desvalorização maior da moeda enquanto o governo eleito pressionaria para que esse “trabalho sujo” fosse realizado por Mauricio Macri.
Com pouca margem (falta de recursos) para voltar a políticas de corte populista, um futuro governo hipotético da Frente de Todos poderia ser mais ortodoxo que o atual em termos fiscais, e utilizar os bons contatos que o peronismo costuma ter com os grupos empresariais para realizar reformas como a da previdência e a trabalhista, que se provaram impossíveis para um governo sem maioria no Legislativo e que enfrentou fortes obstáculos impostos por grupos de poder próximos ao sistema tradicional de fazer política e manter privilégios.
O que dispõe que sim, é possível que um governo de Alberto Fernández realize uma virada digna de Copérnico na política externa. Talvez a estrela do governo Mauricio Macri, reconhecido pelos principais países do mundo e por líderes de diversas extrações políticas, seja o ponto em que as diferenças são mais fáceis de vislumbrar.
A relação com Brasil, Estados Unidos e Europa precisará ser retomada praticamente do zero. A distância com relação ao Grupo de Lima e a negativa por parte de Fernández de definir como ditadura o governo de Nicolás Maduro, que o é, pesam contra a possibilidade de manter o caminho adotado por Macri quanto aos alinhamentos de uma região decerto muito convulsiva nos dias atuais.
Foto de acdelp.8479 em Foter.com / CC BY-NC-ND
Autor
Cientista Político. Colunista de vários meios argentinos, como Clarín, La Nación, Perfil, Infobae e El Cronista. Bacharel em Ciência Política pela Universidade de Belgrano (Buenos Aires). Membro do Clube Político Argentino.