Diante do aprofundamento das vulnerabilidades sociais durante a pandemia na América Latina e no Caribe, e da falta de respostas com enfoque de gênero, as mulheres têm se destacado pelo papel social que assumiram para aliviar a crise. “As mulheres estão resolvendo a crise além das políticas públicas”, diz uma representante de uma organização internacional sediada no Chile. Segundo ela, em diferentes cidades, as mulheres pobres se auto-organizaram e conseguiram alimentos para cozinhar e, na ausência de recursos disponíveis, fornecer alimentos para outras mulheres pobres.
O caso não é único e não está limitado a alimentos. Sem a ajuda do Estado, as mulheres latino-americanas tiveram que tomar medidas para ajudar a si mesmas e suas comunidades em questões como a violência de gênero, a renda básica e até mesmo na assistência no uso de ferramentas tecnológicas essenciais.
Esta é a conclusão da pesquisa realizada em conjunto com o Dr. Javier Stanziola para o Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais (CIEPS). O objetivo era descobrir se os governos da região responderam às necessidades das mulheres através de políticas públicas sensíveis às questões de gênero e os fatores institucionais (ou regras do jogo) que afetaram as mudanças no processo de elaboração destas políticas.
Entre as reflexões finais do estudo está que a pandemia, longe de se tornar uma oportunidade de inovação e mudança, demonstrou um alto nível de rigidez institucional na maioria dos países estudados.
Ação social diante da rigidez
Na Colômbia, uma entrevistada de uma organização sindical relatou esforços para solicitar ao governo uma renda básica equivalente ao salário mínimo legal para sete milhões de famílias pobres. E no Peru, mulheres de uma organização social se reuniram para pedir ao governo que as treinasse sobre o aumento da violência de gênero durante a quarentena, com o objetivo de levar lições de volta à comunidade. No entanto, não houve resposta.
O treinamento dessas mulheres para fins de empoderamento foi um fator comum entre as entrevistadas. Um exemplo é o de um movimento social no Equador rural, onde elas mesmas dirigiram escolas de formação.
“Começamos por uma província, depois a formação se ampliou para o país (…) [e] também se abriu para a América Latina”, conta uma das entrevistadas. Havia “cerca de 200 mulheres, que é um capital semente, humano, político e social em cada uma das províncias…(e) elas não guardam [o] conhecimento, mas o replicam em suas organizações, comunidades e também em suas famílias”.
Por outro lado, havia organizações que prestavam assistência no uso de ferramentas tecnológicas que os governos usavam para financiar a compra de alimentos ou ajudas sociais. Entretanto, certos grupos de mulheres não possuíam habilidades digitais, nem tinham contas bancárias, como declarou uma entrevistada de uma organização de trabalhadoras do sexo na Argentina.
Autogestão alimentar e econômica
Além das histórias aqui apresentadas, houve relatos comuns de esforços para atender às necessidades alimentares das famílias, especialmente entre as mulheres de setores vulneráveis. Uma mulher de um movimento social em El Salvador disse que foram entregues 200 cestas de alimentos a mulheres rurais.
Na mesma linha, uma especialista acadêmica da Argentina reconheceu que “durante a pandemia, aquelas que estão nos clubes de bairro, nas organizações, produzindo alimentos para todos, reunindo rações alimentares são as mulheres, às vezes mais visíveis, às vezes menos visíveis…”.
Vale destacar as ações dos produtores agrícolas, que utilizavam a permuta para satisfazer as necessidades alimentares de regiões com características geográficas e produtivas diferentes, complementando assim os produtos necessários para sua alimentação através da autogestão.
Um exemplo é o caso das comunidades camponesas no Equador, que se organizaram e fizeram permuta de alimentos. Uma das entrevistadas de um movimento social disse que a permuta “foi feita, mas não através do governo nacional, foi absolutamente autogerida pelo setor camponês aqui no Equador, e com as organizações sociais, o fortalecimento que ocorreu foi tenaz”. (…) Cerca de 716 organizações se uniram durante esta pandemia”.
Esforços infrutíferos e a necessidade de políticas públicas com enfoque de gênero
Os relatos acima constituem uma das duas etapas da pesquisa qualitativa. A primeira etapa consistiu em uma revisão das medidas anunciadas pelos governos centrais de 21 países da América Latina e do Caribe no início da pandemia. A segunda foi baseada em 27 entrevistas com informantes-chave em 13 países entre setembro de 2020 e abril de 2021.
Os esforços políticos observados nos países com mais ações são devidos às plataformas existentes que responderam às necessidades específicas das mulheres. Isto permitiu que atores-chave anunciassem medidas, sem serem claros sobre sua eficácia. Embora um discurso institucional sobre a integração do enfoque de gênero tenha sido posicionado nos países, ele tem sido principalmente performativo. Falta um senso efetivo das necessidades diferenciadas das mulheres e uma incipiente transversalidade destas ações no setor público.
O papel das organizações sociais, especialmente as feministas, diante da rigidez institucional durante a pandemia, emergiu na pesquisa. Embora não seja o tema do estudo, destacamos como essas organizações enfrentaram rigidezes através de esforços de advocacy para colocar a agenda das mulheres entre as preocupações dos governos centrais.
Apesar disso, esses esforços têm tido pouco sucesso, em parte devido à fraqueza dos mecanismos de participação pré-existentes antes da pandemia e seus vínculos limitados com a esfera institucional.
Em suma, o trabalho, o compromisso e a experiência das organizações sociais femininas, diante da rigidez institucional, é de grande valor e pode ser útil aos atores centrais para melhorar sua compreensão das diversas realidades enfrentadas pelas mulheres, levando à formulação de políticas públicas com maior consenso.
*Tradução do espanhol por Carolina Marins
Autor
Pesquisadora do Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais. Doutora em Direito pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Especialista em Direitos Humanos, Gênero e Educação Superior.