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Bolívia: a democracia não tem quem lhe escreva

É certo que a democracia é um conjunto de regras incorporadas, na maioria das vezes, em Constituições e normas eleitorais, mas é também um conjunto de disposições não postas no papel. O historiador político britânico James Bryce afirmava que não são as Constituições que garantem o funcionamento político de um país, mas as regras não escritas, aquelas que prescrevem o bom juízo ao usar o poder. Quando isso não ocorre, as instituições, criadas para serem os guardiões da Constituição e da democracia, e para estabelecer limites ao governo de turno, tornam-se aliadas de presidentes que preparam o caminho para governos autoritários.

O ex-presidente Evo Morales, protegido por sua ampla maioria parlamentar, estendeu seu domínio (pouco a pouco durante seus mandatos) sobre os demais poderes do Estado e anulou qualquer organização que considerava perigosa para sua gestão. Atacou líderes de direita e esquerda, meios de comunicação e, paradoxalmente, algumas organizações indígenas.

Esta lógica não mudou com Luis Arce. Em setembro deste ano, a bancada do MAS, aproveitando que um grupo de parlamentares opositores estavam viajando, mudou a ordem do dia e elegeu o novo defensor do povo, um personagem do qual se tem suspeitas de afinidade com o partido oficialistas. Esta ausência de freios e contrapesos ao exercício do poder tem sido acompanhada por uma linguagem sem limites.

A Bolívia está vivendo atualmente um conflito em torno da data de realização do censo de população e habitação, com o governo propondo que o faça em 2024 e a oposição de Santa Cruz em 2023. Este assunto tem servido para que os políticos possam mostrar sua notável capacidade de lançar impropérios.

O executivo da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Campesinos da Bolívia, Eber Rojas, desafiou o governador de Santa Cruz, Luis F. Camacho, para lutar a “punho limpo”, ameaçando matá-lo junto ao presidente da organização cívica de Santa Cruz. Por sua vez, o governador, sob o olhar atento e piedoso do Cristo Redentor, chamou o presidente Arce de covarde diante de uma multidão.

Mas isso não é preocupante, dado que é sabido que a política é um ímã de pessoas com ambições ilimitadas e poucos escrúpulos; o preocupante é que isso não seja mais condenado, mas celebrado pelos seguidores dos caudilhos. A clara ameaça de morte do líder sindical não despertou nenhuma censura de sua organização e nem sequer da justiça. Pelo contrário, foi o chamado de clarinete para grupos ligados ao MAS com um cerco e marcha em direção à cidade de Santa Cruz para exigir a renúncia de Camacho.

Por outro lado, o adjetivo do governador de Santa Cruz ao presidente Arce foi visto pelas bases cívicas de Santa Cruz como um ato de hombridade e sinceridade. Para muitos, foi uma amostra do “ser” de Santa Cruz.

Recorrentemente, consideramos que a democracia necessita de institucionalidade, como se as regras e sua aplicação fossem suficientes para deter a deterioração democrática. Infelizmente, não é assim. Muitos líderes autoritários chegaram ao poder em total conformidade com todas as regras da democracia, mas depois passaram a danificá-la por dentro. Isto acontece, inclusive, em democracias “consolidadas”, como Estados Unidos e boa parte da Europa. Parte deste dano se deve justamente à falta de respeito pelas regras não escritas da democracia.

Com as regras que procuram evitar o uso do poder de forma desmedida, só as ruas permanecem como espaços de resolução de conflitos. Uma vez quebrada toda moderação e juízo sobre a própria força, qualquer tentativa de negociação ou pacto se torna impossível. Só resta a imposição, a violência e a falsa ideia de triunfo. A vitória em um campo de batalha “é uma ilusão de tolos”, disse Faulkner. E tinha razão.

Luis Arce segue o caminho de Morales

Finalmente, a lógica de ignorar as regras não escritas da democracia mudou com Luis Arce? Muito pouco. Vários personagens que emergiram na conjuntura de 2019 e que o governo considera como autores do “golpe de Estado” seguem detidos. Foram abertos processos judiciais contra ex-funcionários, como a ex-prefeita de El Alto, Soledad Chapetón, atualmente detida, e o ex-prefeito de La Paz, Luis Revilla, atualmente escondido. E o comitê cívico combativo de Potosí tem sido intervencionado pelas forças da ordem, e seus líderes têm sido acusados judicialmente.

Estas ações são mais um ajuste de contas com os líderes que apoiaram o movimento cidadão contra o MAS do que uma aplicação correta da lei contra ex-funcionários corruptos. Isto é evidente quando o governador do departamento de Potosí goza de plena liberdade e continua no cargo apesar das provas de corrupção contra ele. Também é demonstrado pelo evidente atraso no julgamento de um ex-prefeito de Cochabamba, que é solidário ao partido do governo.

Portanto, as causas do mal-estar de uma grande parte da população não foram apagadas. A lógica de concentração do poder, a tutela do executivo sobre o judiciário, a seleção de funcionários públicos mediante critérios de afinidade ao governo e a corrupção dos burocratas do MAS continua.

Em seus dois anos de gestão, Luis Arce teve que lidar com vários conflitos nos quais apenas a vontade política era necessária para resolvê-los. No atual conflito sobre a data do censo, Arce, como Evo, persiste na ideia de negar a existência de um cidadão crítico ao seu governo e se recusa a aceitar suas sugestões e demandas. Embora já não seja Evo que mande, seu estilo de governo se mantém.

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Cientista político. Professor e pesquisador da Universidade San Francisco Xavier (Sucre, Bolívia). Doutor em Ciências Sociais com especialização em Estudos Políticos por FLACSO-Equador.

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