Nas próximas semanas, serão completados 60 anos do golpe que derrubou o presidente João Goulart no Brasil e instalou a última ditadura. Foi na manhã de quarta-feira, 1º de abril de 1964. Entre os militares brasileiros favoráveis ao golpe, o evento é conhecido como “revolução de 1964” ou “contrarrevolução de 1964”. E parece que a política brasileira se prepara para relembrá-la, recriando, em um contexto muito diferente, comportamentos parecidos, jogando à beira da catástrofe.
A investigação judicial sobre a tentativa do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus colaboradores próximos de impedir a posse de seu sucessor Lula da Silva, o duelo entre ambos e a incidência de fatores externos, com declarações de Lula que suscitam perplexidade, nos remetem a tantos episódios similares da história latino-americana do século XX. Golpes de Estado fracassados ou consumados, interrupções sangrentas ou não de mandatos constitucionais, derrubada de presidentes ou impedimento de que assumam, eram práticas comuns no passado. Quarenta anos de democracia domesticaram as bestas selvagens e canalizaram as crises e conspirações pela via constitucional.
Curzio Malaparte, jornalista, diplomata e escritor italiano que inicialmente aderiu ao fascismo, para depois abjurá-lo e sofrê-lo na própria pele, observou o fenômeno na Europa dos anos 1920: as democracias liberais eram sitiadas pelo assédio de direitas e esquerdas radicalizadas. Em “Técnicas do Golpe de Estado”, livro publicado em 1931, Malaparte trata de distintos casos emblemáticos de tentativas de tomar o poder, algumas exitosas, outras frustradas, de Napoleão a Luís Bonaparte, de Lênin e Trotsky a Mussolini e Hitler. Argumentou que a conquista e a defesa de um Estado eram questões que obedeciam a regras e procedimentos que precisava-se compreender, tanto para usá-los quanto para enfrentá-los, independentemente das condições econômicas, sociais ou ideológicas.
Na América Latina, sob essa mesma modalidade, golpes de Estado foram preparados e executados em nome da democracia e contra o comunismo. Agora é diferente, as democracias estão mais enraizadas, as Forças Armadas são menos propensas a se deixar arrastar para aventuras políticas em nome da “salvação da pátria”, há poderes judiciais e sociedades civis cujas atuações e vozes são mais difíceis de calar, embora não falte quem tente fazê-lo, e embora as redes propaguem novas formas de ação psicológica e “climas de opinião” para os quais contribuem os trolls, as fake news e as campanhas negativas.
A verdade é que, na era digital, tudo está exposto e à vista: o próprio ex-presidente Bolsonaro, além de ser um político experiente e veterano da arena parlamentar, é um militar reformado com a patente de capitão do Exército, encarregou-se de filmar as reuniões da conspiração, prova que está anexada ao processo judicial contra ele.
Meses antes das eleições, Bolsonaro buscava a reeleição e enfrentava seu grande rival Lula da Silva – de volta à arena política depois de passar 19 meses preso por uma condenação em um caso de corrupção – denunciando a possibilidade de fraude e alegando que havia uma conspiração para tirá-lo do poder. Foi o que disse aos embaixadores estrangeiros. Por essa intervenção, Bolsonaro foi impedido de concorrer às eleições até 2030.
Em 30 de outubro, Lula venceu a eleição mais acirrada da história do Brasil. O líder do Partido dos Trabalhadores obteve 50,9% contra 49,1% de Bolsonaro. No dia seguinte, dezenas de milhares de bolsonaristas clamaram por fraude em quartéis de todo o Brasil e pediram por intervenção militar. Em 19 de novembro, três assessores se reuniram com Bolsonaro no palácio presidencial e levaram a ele um projeto de decreto golpista que anularia as eleições e prenderia dois juízes do Supremo Tribunal Federal e o presidente do Senado. Bolsonaro convocou a cúpula das Forças Armadas, os generais Marco Antonio Freire Gomes (Exército), Carlos Baptista (Aeronáutica) e o almirante Ailton Garnier (Marinha), e o ministro da Defesa para apresentar-lhes o decreto com o qual pretende revestir de legalidade o que seria uma ruptura constitucional. O chefe da Marinha abraçou a ideia. Mas seus colegas do Exército e da Força Aérea hesitaram. Duas semanas antes do fim do mandato de Bolsonaro – Lula assumiu o cargo em 1º de janeiro de 2023 – as milícias digitais bolsonaristas lançaram uma campanha contra os chefes do Exército e da Força Aérea, chamando-os de “traidores da pátria”.
Uma semana após a posse de Lula, o Brasil viveu um novo tumulto. Em 8 de janeiro de 2023, milhares de bolsonaristas que acampavam diante do Quartel General do Exército desceram na Praça dos Três Poderes e invadiram o coração da democracia brasileira em Brasília. Uma multidão de apoiadores do ex-presidente tomou as sedes do Congresso, da Presidência e do Supremo Tribunal de Justiça, imitando o que aconteceu em Washington em 6 de janeiro de 2021. Quebraram vidros e móveis diante da impotência da polícia, que só conseguiu assumir o controle várias horas depois.
Bolsonaro e outras 28 pessoas são formalmente acusadas de arquitetar uma tentativa de golpe. Quatro deles, assessores do governo anterior, foram presos na Operação Tempus Veritatis. Os demais, submetidos a diversas medidas cautelares. O passaporte do ex-presidente foi apreendido e ele está proibido de viajar ao exterior. Sua situação parece cada vez mais complicada.
Há 60 anos do golpe de 64, a investigação judicial que o compromete serve para Bolsonaro fazer campanha, seguir o “manual de estilo Trump2024”, inverter o ônus da prova, acusar o Judiciário de persegui-lo e buscar vingança contra seu sucessor, que – por sua vez – parece jogar o mesmo jogo com suas declarações polêmicas sobre os temas mais sensíveis da política internacional, o que levou a pedidos de “impeachment” contra ele no Parlamento.
Curzio Malaparte teria uma galeria de personagens para agregar vários capítulos latino-americanos à sua obra clássica. Primeiro como tragédia, depois como farsa, a história nunca se repete… mas, como disse Mark Twain, muitas vezes rima.
*Texto originalmente publicado no jornal Clarín.
Autor
Cientista político e jornalista. Editor-chefe da seção Opinião do jornal Clarín. Prof. da Univ. Nacional de Tres de Febrero, da Univ. Argentina da Empresa (UADE) e de FLACSO-Argentina. Autor de "Detrás de Perón"(2013) e "Braden o Perón. La historia oculta"(2011).