Coautores Ciro Torres, João A. Lins Sucupira, Luiz M. Behnken
A resposta à atual polarização da sociedade brasileira é uma só: mais democracia. A democracia brasileira talvez seja, do ponto de vista institucional, uma das mais permeáveis à participação social. Ainda que de maneira formal e legal, nossa Constituição prevê “a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação” das políticas sociais. De fato, em praticamente todas as políticas do nosso sistema de proteção social está prevista a participação via conselhos setoriais (saúde, meio ambiente, assistência, educação, cultura etc.), constituídos por representantes do poder público, do empresariado e da sociedade civil.
Apesar das dificuldades de se garantir uma efetiva participação por meio de tais conselhos, não se pode negar a importância do controle social na qualificação das políticas públicas no País. Podemos afirmar, sem medo de errar, que a qualidade e consistência de políticas como o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), apenas para citar alguns exemplos, devem muito à participação, seja na formulação da política seja na sua gestão.
Toda esta participação, contudo, não alcança o “andar de cima” do Estado brasileiro, ou melhor, os órgãos que gerem as finanças públicas e as políticas econômicas, como o Ministério do Planejamento e da Fazenda, bem como os bancos públicos. Sob o manto de uma razão técnica, supostamente neutra, tais órgãos se colocam à salvo do debate público, sendo governados por um elevado grau de homogeneidade de opinião e interesses de uns poucos (rentistas), adoradores da “austeridade”, do “ajuste fiscal”.
Desde a redemocratização do País, vivemos presos por um ajuste fiscal sem fim, que a despeito de enfrentar o desequilíbrio das contas públicas, só faz reproduzi-lo e aprofundá-lo, submetendo o povo brasileiro a um trabalho que nem Sísifo suportaria. Isso porque, o ajuste sempre incidiu sobre os “gastos” sociais, em proveito da agiotagem operada pelos grandes credores da dívida pública. Não por acaso, a implementação de boas políticas, construídas a duras penas com a participação social, esbarra, quase sempre, na “restrição fiscal”.
O momento político no Brasil, com a eleição de um governo de coalizão, sob a liderança de um partido de centro-esquerda, representa uma oportunidade de ouro para que se abra o debate da agenda econômica e fiscal brasileira. Esta seria, sem dúvida, uma pauta que permitiria ao Governo Lula escapar da polarização política, submetendo a agenda econômica ao controle democrático.
Com a desmoralização do “teto de gastos”, já se prevê que o terceiro Governo Lula precisará instituir uma nova regra fiscal. Há um compromisso do novo governo em discutir uma reforma tributária, pelo menos no tocante ao imposto de renda. Tais agendas devem se abrir ao debate, à participação da sociedade.
Não há mais espaço para a cantilena do “ajuste fiscal”. Os rumos da política econômica e fiscal precisam se submeter ao escrutínio público. Alguém poderia objetar que se tratam de matérias com um nível elevado de tecnicidade e complexidade, que dificilmente poderiam ser objeto de um debate mais amplo na sociedade. Sem dúvida, todas as políticas públicas, não só as econômicas, sempre trazem certo grau de complexidade. Daí o argumento da tecnicidade para obstar a participação em assuntos econômicos ser falso e enganoso.
Trata-se, pois, de discutir com a devida transparência dos dados orçamentários e monetários, as diretrizes mestras das políticas fiscais e econômicas do País. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal prevê o “incentivo à participação popular durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos”.
São bastante conhecidas as experiências de “orçamento participativo”, desenvolvidas por prefeituras governadas pelo Partidos dos Trabalhadores (PT). Sem dúvida, tais experiências representaram um ensaio importante de envolvimento da participação nas finanças públicas, embora limitada, normalmente, à parcela do orçamento de investimento dos municípios.
Já em nível federal, cabe avançarmos sobre as diretrizes fiscais e econômicas que orientam a própria elaboração do orçamento, sob pena de vermos frustradas as expectativas de organizações e movimentos sociais pela retomada da participação no novo Governo Lula.
Basta lembrar que nos governos anteriores do PT houve um processo de muita participação através das chamadas conferências nacionais, voltadas a incidir sobre a formulação de diferentes políticas setoriais do governo. Processo esse que se viu muitas vezes frustrado pela não implementação de políticas fruto da participação, justamente em razão dos “limites fiscais”.
Lula já disse que pretende retomar a agenda das conferências nacionais. Pois bem, está mais do que na hora de se pensar em um processo de conferências nacionais para se discutir com representações da sociedade civil a agenda fiscal e econômica do País. Para além do formato e da composição de tais conferências, importa sinalizar para a sociedade o fim da blindagem do debate fiscal e econômico, monopolizado hoje pelas oligarquias financeiras hegemônicas e seus porta-vozes na academia e mídia.
Precisamos pôr em debate se queremos seguir com uma estrutura tributária profundamente regressiva, que penaliza os mais pobres em favor dos mais ricos. Se o controle fiscal seguirá restringindo as políticas sociais e os investimentos, sem estabelecer limites sobre despesas financeiras. Se continuaremos com as maiores taxas de juros reais do planeta. Se vamos nos valer do crédito público para favorecer a desconcentração e diversificação produtiva, ou prosseguir no caminho da desindustrialização, mantendo o País refém das commodities agro-extrativistas.
Precisamos de mais democracia, de projetar a participação social sobre o “andar de cima” do Estado. Talvez essa seja uma das principais tarefas dos setores progressistas brasileiros. Só assim retomaremos, das mãos de uns poucos, o debate e a definição sobre os rumos e objetivos da nação.
Em outros tempos, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) já havia proposto, sem maiores consequências, a participação de representantes dos trabalhadores no Conselho de Política Monetária (COPOM). Houve também a experiência da “Plataforma BNDES”, que reuniu, de 2007 a 2011, diferentes organizações e movimentos sociais voltados a democratizar a política operacional do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Tal experiência contribuiu para que este banco público adotasse uma política socioambiental e de transparência, ainda que frágeis.
Àqueles que temem a “reação do mercado” à sua própria desmistificação, gostaríamos de lembrar que o “rei já está nu” e que se teimarmos em não expor a sua nudez, o seu despudor não encontrará limites, como de resto o bolsonarismo o demonstra. A melhor forma de fazermos avançar a democracia, exorcizando práticas autoritárias e neofascistas, será, exatamente, submetendo as finanças e economia públicas ao controle social. A hora é esta!
Ciro Torres. Doutor em ciência política pela UFF, professor da PUC-Rio.
João Antônio Lins Sucupira. Economista pela UNB, fundador do Fórum Popular do Orçamento do Rio de Janeiro e Professor da PUC-Rio.
Luiz Mário Behnken. Economista pela UFRJ e fundador do Fórum Popular do Orçamento do Rio de Janeiro.
Autor
Cientista Político. Professor da UNIRIO e da PUC-Rio. Coordenador do Instituto Mais Democracia. Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ (atual IESP/UERJ).