Coautora Melissa Martins Casagrande
Com o crescimento de situações que forçam o deslocamento de pessoas no mundo, o Brasil tem sido o destino de um grande número de solicitantes de refúgio nos últimos anos. O aumento de pedidos, no entanto, não se traduziu em mais eficiência no seu processamento das solicitações de reconhecimento do status de refugiado, o que tem provocado o crescimento da fila de espera, chamada de passivo. Há poucos anos, essa fila ultrapassou 100 mil pessoas, um dado preocupante já que impacta diretamente na proteção a essas pessoas.
Apesar da lei brasileira garantir uma série de direitos desde o momento da solicitação, há outros direitos acessíveis apenas após o reconhecimento do status de pessoa refugiada. Essa demora na fila passa do aceitável para um país que se coloca como liderança na temática, ainda mais quando o problema não é a lei ou o instituto protetivo em si, mas a falta de estrutura para dar vazão aos pedidos.
Este ano, a Lei de Refúgio completa 25 anos e o Brasil deve aproveitar o momento para reavaliar a estrutura que disponibiliza para as ações relacionadas ao tema, pois, caso isso não ocorra, fará com que os números que mais importam sejam os de pessoas aguardando a sua solicitação ser analisada e o tempo para que isso ocorra.
Refúgio em números
O relatório mais importante sobre o tema no Brasil é o informe produzido pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) denominado Refúgio em Números, que traz os dados sobre refúgio no país. É a partir dele que a sociedade pode conhecer esse público, os pesquisadores podem se debruçar sobre as informações e os responsáveis por políticas públicas conseguem ter subsídios para construir e implementar as medidas necessárias.
A primeira versão do relatório foi lançada em 2016, com os dados de 2015, momento em que o Brasil passava por alterações na realidade sobre o refúgio, como o aumento do número de solicitações, elemento que passa a tensionar o sistema de análise. Em julho de 2015 o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), expôs a necessidade de reduzir o passivo em sua ata da 103ª reunião.
Desde então, o quadro piorou, com mais solicitações sendo realizadas, em um cenário que tende a permanecer, principalmente porque houve aumento do número de refugiados e solicitantes no mundo, além da persistência dos fatores geradores de refúgio ao redor do globo. Por conta desse contexto, o Brasil ocupa a terceira posição entre os países das Américas com maior número de solicitações aguardando para serem analisadas, atrás apenas dos Estados Unidos e do Peru. A primeira medida que reduziu essa fila foi o reconhecimento da grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela, que permitiu a simplificação do processo de reconhecimento da condição de refugiado para essas pessoas. Isso fez com que a tomada de decisão fosse feita em grandes blocos, que foram expressivos a partir do final de 2019, a ponto do Brasil ter declarado mais de 51 mil venezuelanos como refugiados.
Entretanto, mesmo com essa iniciativa, os venezuelanos ainda são a nacionalidade com o maior número de solicitações aguardando análise, em uma cifra de mais de 90 mil pessoas, quase o dobro dos reconhecidos. Portanto, mesmo a nacionalidade para a qual o Brasil mais tem dedicado esforços nos últimos anos, como toda a estrutura montada a partir da fronteira entre Venezuela e Brasil, o passivo ainda é muito grande e afeta a efetividade das respostas.
Situações que aumentam a fila
Outra ação que impactou o passivo foram as diversas portarias de fechamento das fronteiras nos anos de 2020 e 2021 em decorrência da pandemia de Covid-19, pois impediram o ingresso regular de refugiados e outros migrantes no Brasil, impossibilitando aos dois grupos a regularização, estancando, dessa forma, o número de solicitantes enquanto estiveram em vigor.
As portarias significaram que mesmo que a pessoa conseguisse ingressar no território brasileiro, não era possível a solicitação do refúgio, em uma afronta ao texto legal. O resultado dessas medidas foi o surgimento de um tema até então pouco presente na realidade brasileira: o aumento expressivo de migrantes e refugiados irregulares, traduzido em crescimento em mais de 5.000% nas deportações em 2020. No caso dos refugiados, ações como essa representam um enorme risco em virtude do desrespeito ao princípio basilar da não devolução ao lugar onde sua vida e segurança estejam ameaçadas.
Além disso, em 20 de novembro de 2020, uma ação do Conare julgou e indeferiu 17 solicitações de refúgio sem a realização das entrevistas, com a justificativa de que os pedidos eram infundados. Essa decisão contraria o que dispõe a Lei 9.474/97, a Lei do Refúgio, e a Resolução Normativa emitida pelo próprio Conare. A alegação é de que pedidos abusivos trazem dificuldades para a própria manutenção do sistema de análise. No entanto, esse tipo de decisão representa a diminuição de direitos, enfraquecendo o próprio direito ao refúgio e possibilitando o cometimento de injustiças.
Solicitações abusivas já são objeto de debates há muito tempo, tanto que em 1983, a recomendação n.º 30 do Comitê Executivo do ACNUR já analisou a questão, apontando preocupação com as possíveis consequências para uma pessoa que efetivamente precisa de proteção e que não tenha possibilidade de realizar o seu pedido ou não seja entrevistada, o que justificaria a manutenção de medidas como o direito à entrevista pessoal em todas as hipóteses, direito previsto expressamente na Lei 9.474/97, a Lei do Refúgio, em seu artigo 9º.
Não se trata de negar que existem pedidos abusivos ou infundados, tanto que a maioria das solicitações não são reconhecidas pelo Brasil. Mas não reconhecer sem passar por todas as fases estabelecidas em lei afronta o devido processo legal. Como o objetivo é proteger, é mais adequado se garantir a escuta, pois a entrevista pode ser oportunidade única para compartilhar informações não evidentes no formulário submetido à Polícia Federal com a solicitação do reconhecimento do status de refugiado.
A melhor forma de resolver questões como essa não é a restrição, mas sim a ampliação, que no caso brasileiro deve acontecer no âmbito do próprio Conare, pois se observa que, por mais que o número de pessoas vinculadas ao órgão tenha aumentado nos últimos anos, o órgão se mostra insuficiente para atender ao crescimento da demanda.
Quando se observa o ritmo de análise das solicitações, percebe-se que dificilmente o passivo será vencido, o que prejudica os solicitantes, o próprio órgão de análise e dificulta o planejamento de melhorias em relação ao tema. Esse contexto abre espaço para que se produzam respostas como a do indeferimento sem entrevista, as quais estão em desacordo com a lei e com o espírito protetivo de toda a lógica do refúgio.
*O artigo resulta de estudo solicitado pela Conectas Direitos Humanos, conduzido pelos autores de agosto de 2021 a junho de 2022.
Advogada. Doutora em Direito pela McGill University, Canada. Tem pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e é Mestre em Direito pela mesma instituição.
Autor
Diretor e professor do Centro de Ciências Humanas (CCH) da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.