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Chile: Notas urgentes sobre o referendo constitucional

A derrota do Apruebo no referendo instaurou a desilusão generalizada entre os grupos que defendiam a mudança de Constituição no Chile e, inversamente, uma grande alegria entre aqueles que defendiam o status quo jurídico da Constituição de 1980. São reações emocionalmente compreensíveis, mas requerem uma reflexão moderada. A leitura sobre a derrota do Apruebo terá que ser feita com calma e com elementos de análise suficientes, e agora é possível apenas uma primeira aproximação.

Comecemos por situar a situação em que o processo se encontra. A negativa do projeto de Constituição (62%) deve inevitavelmente ser analisada à luz das maiorias que iniciaram um processo constituinte democrático em outubro de 2020, quando 78% apoiaram a redação democrática de uma Constituição, e 79% preferiram uma assembleia constituinte original, sem a participação do parlamento. A posição do povo parece clara: sim a um processo constituinte que revogue a Constituição Pinochet, não a um projeto concreto de Constituição que não satisfaz as expectativas que eles exigem.

Há algum problema no conteúdo da proposta? Basta olhar rapidamente para os debates durante a campanha para se aproximar do problema principal do projeto: contém uma carga social importante em termos de direitos, mas invisível por trás de várias decisões arriscadas, desnecessárias e de difícil compreensão. Por exemplo, a discussão sobre o fim da unidade do Estado chileno.

Uma Constituição não precisa declarar por escrito a plurinacionalidade, conceito teoricamente relevante, mas difícil de explicar no campo político. Basta incorporar materialmente seu conteúdo, tais como os direitos dos povos indígenas ou o reconhecimento de seus atos. Também não é necessário (neste caso, nem mesmo teoricamente correto) enunciar que a soberania reside no povo “formado por diversas nações”; bastaria incluir instrumentos de democracia participativa para que esta soberania fosse efetiva. São insumos que não lançaram luz sobre o debate; pelo contrário, trouxeram muita confusão. Uma Constituição não é um tratado de teoria constitucional; é a norma fundamental de um Estado que reflete seus fundamentos.

Para a população comum, em geral, esses debates não suscitam o menor interesse. Ao contrário, eles os consideram contraproducentes porque desviam a atenção das verdadeiras reivindicações sociais que levaram o povo chileno a tomar as ruas em outubro de 2019. Suas preocupações tendem a ser aquelas que afetam os direitos sociais (trabalho, moradia, saúde etc.) e lhes permitirão viver melhor.

Embora o projeto constitucional apostasse em um Estado social sólido, este não era o foco principal de sua mensagem, nem foi adequadamente comunicado. As pessoas também querem participar na decisão de questões importantes. Por exemplo, reformar a Constituição. No projeto apresentado, a reforma da Constituição não requeria decisão popular. O governo (presidencialista, com pequenos ajustes) permaneceu o mesmo, uma vez que a proposta inovadora de avançar para um sistema parlamentar foi abandonada pela Convenção.

O bicameralismo legislativo continuou, transformado em uma câmara de representação territorial, mas sem competências legislativas nas regiões. Estas eram questões transcendentes que poderiam ter sido mais bem tratadas na Convenção; mas esta ocupou seu tempo com outros assuntos, como discutir regulamentos que pouco importavam para o povo.

A campanha de rejeição engordou com esses e outros erros, que eram amplamente suscetíveis à instrumentalização. Recordemos o espetáculo oferecido em determinados momentos pela Convenção Constitucional que – por inexperiência, falta de responsabilidade, ou ambas – estampavam as capas do dia com as dificuldades para construir consenso, e várias trivialidades. No final, as noites se tornaram eternas em uma pressa desesperada para cumprir os prazos. A Convenção viu sua credibilidade corroída a marchas forçadas e seu capital político desperdiçado. A campanha do Apruebo não foi fácil.

Pois se um processo constituinte é o melhor momento em um país para criar consensos, este certamente não o foi. Aqueles que estavam a favor ou contra o projeto buscaram apoio incondicional para uma ou outra opção, sem possibilidade de aproximação: preto ou branco; agora ou nunca; Pinochet sim ou não.

Mas a democracia real não é aquela que determina a vontade de uma maioria conjuntural sobre outra, mas a que constrói as bases do consenso para um acordo majoritário. O confronto acabou em uma colisão mais parecida com uma eleição presidencial do que na construção coletiva de uma Constituição. Se Apruebo tivesse ganho, o problema seria o mesmo: crer, equivocadamente, que em um processo constituinte democrático há vencedores e perdedores.

Nos confrontos, leva a vitória quem aproveita melhor as fraquezas do rival. Na sociedade onde as fake news são distribuídas em massa com o apertar de um dedo, alguém pode acreditar que o país teria duas bandeiras, ou que o Estado se apoderaria dos bens das famílias, com uma simples interpretação interessada de um texto. Não levar em conta a incidência deste tipo de informação (desinformação, mas informação para aqueles que a recebem sem um andaime mais crítico) é suicídio político. Porque não nos permite conhecer a realidade em que alguns setores sociais operam, nem nos permite levar em conta que quem se posiciona contra o progresso democrático utilizará todos os recursos necessários para acessar campanhas de difamação em larga escala. Cabe recordar os casos ainda recentes do Brexit na Grã-Bretanha e a “vitória” de Trump nos Estados Unidos para que se possa perceber esta realidade de nossa época, a necessidade de enfrentá-la com as ferramentas adequadas.

Vale acrescentar à análise o enorme erro político que foi a decisão tomada pelo Apruebo de propor a reforma da Constituição imediatamente após sua aprovação, quando ela ainda não havia nascido. Não é difícil vislumbrar o duro impacto que uma mensagem deste calibre supõe em um eleitorado que é convocado para votar por uma Constituição que é reconhecidamente mal redigida e será reformada no dia seguinte à sua aprovação.

São decisões que desencorajaram o apoio e só podem ser fruto de um laboratório frio de análise partidária. Se a isto acrescentarmos outro grande erro, obrigar os eleitores a votar (voto obrigatório, que havia sido banido no Chile), as consequências não demoraram muito a chegar. O voto obrigatório se traduz em desprezo pela opção democraticamente legítima de não participar de uma determinada votação pelas razões que cada pessoa julga apropriadas. O voto obrigatório cria preconceitos no comportamento eleitoral que alteram a decisão democrática, porque a abordagem nas urnas não é feita da mesma perspectiva quando alguém quer participar e quando não quer, mas é obrigado. 

A experiência chilena nos deixou com muitas perguntas, tais como se os referendos devem ou não responder a perguntas dicotômicas ao invés de complexas, ou a forma como as assembleias constituintes devem canalizar a vontade popular. Haverá tempo para estas reflexões. O que parece claro é que um projeto de Constituição concreto foi descartado, mas a vontade do povo chileno de deixar o passado para trás permanece intacta. Portanto, o processo constituinte segue plenamente ativo.

Autor

Profesor de Derecho Constitucional del Depto. de Derecho Constitucional y Ciencia Política de la Univ. de Valencia (España). Doctor en Derecho. Especializado en democracia y procesos constituyentes con foco en América Latina.

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