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Como o Trump chegou tão longe?

Acreditar que o triunfo de Biden é o fim do drama que se desdobra desde janeiro de 2016 é um exemplo de uma miragem de consequências fatais. Fingir que esses milhões de eleitores, que seguiram Trump até o fim, desaparecerão do mapa em 20 de janeiro com a posse de Biden e Harris revela uma cegueira em relação ao quanto a América mudou nas últimas gerações. Mas o que é ainda mais preocupante não é a sobrevivência da ideologia daqueles que elevaram Trump. O enigma é como esse terço do eleitorado ocupou um espaço vital.

Numerosos observadores da evolução da alma política norte-americana têm levantado nos últimos meses vozes de alarme. Eles se perguntavam sobre a perigosa conversão do sistema político norte-americano em uma imitação incomum do tecido existente em outros países que haviam caído nas redes do autoritarismo.

Muito pior, eles haviam sido engolidos pelas ideologias extremas que surgiram na Europa na década de 1930. Estas impulsionaram os países com longas tradições culturais a se converterem em ditaduras totalitárias. Estas vozes avançaram a comparação do que estava acontecendo mediante a aplicação dos caprichos de Trump, convertidos em políticas que se assemelhavam aos programas práticos do regime de Hitler desde 1933.

Na sociedade dos Estados Unidos do início do novo século, começou-se a detectar a existência de amplos setores que se sentiam encurralados, desapontados e isolados”

Na sociedade dos Estados Unidos do início do novo século, começou-se a detectar a existência de amplos setores que se sentiam encurralados, desapontados e isolados.  Eles não eram os enclaves tradicionais de minorias raciais ou remanescentes de imigrantes europeus que não tinham se encaixado plenamente no tecido social e econômico.

Eles eram, por assim dizer, “americanos de raça pura”. Eles viram o sonho americano começar a se transformar em um pesadelo doloroso, do qual não podiam acordar apesar de terem cumprido fielmente o cartão de civilidade que o sistema havia dado a seus pais ou avós.

Os salários não estavam acompanhando o aumento do custo de vida. As hipotecas estavam consumindo grande parte da renda. Se fossem moradores rurais, eles se sentiam presos por fronteiras invisíveis. Se eles cresceram com uma educação básica, o acesso à universidade era limitado por sua renda ou pelo custo estratosférico das instituições privadas. Era preciso encontrar uma explicação para esta aparenta fraude.

Em suma, essa não era a América que lhes havia sido prometida. Era necessário encontrar com urgência os culpados por esta fraude. Além disso, era necessário detectar a existência de novos líderes que não podiam ser esse establishment odioso e corrupto de Washington. De repente, órfãos de outra direção, esse espaço foi ocupado por um “outsider”, Donald Trump. Ele chegou intacto, sem a mancha da política tradicional. Ele garantiu a descontaminação do pântano de Washington.

Em uma nação razoavelmente educada, seria uma verdadeira proeza ter seguido as melodias de um flautista que lhes havia revelado as causas de seu infortúnio”

Em uma nação razoavelmente educada, seria uma verdadeira proeza ter seguido as melodias de um flautista que lhes havia revelado as causas de seu infortúnio. Como Hitler encantou um povo educado como os alemães do período entre as guerras, Trump os fascinou com suas soluções simplistas.

Na Alemanha, a decadência urbana foi atribuída à suposta captura de certos negócios por parte dos judeus. A solução começou com a quebra de vitrines, a proibição de certas profissões e, finalmente, o encarceramento. O povo, culto e disciplinado, engoliu a mentira sem reclamar.

O regime certamente vendeu a suposta necessidade de expandir o território para o chamado Lebensraum. A solução simples era o Anschluss da Áustria, e depois a mordida dos territórios etnicamente alemães na Tchecoslováquia. O povo aplaudia, mas não pareceu satisfeito: a Polônia deveria ser invadida e depois o protesto anglo-francês deveria ser enfrentado com um Blitzkrieg contundente. Os alemães aplaudiram, enquanto desfilavam triunfantemente ao redor do Arco do Triunfo.

Quando Trump subiu ao trono, muitos americanos que haviam sido atraídos para as zonas urbanas descobriram que os bairros suburbanos puros estavam contaminados pela invasão das minorias raciais, antes pouco detectada. Eles se sentiam desconfortáveis em compartilhar espaço com os negros e, mais ainda, com os hispânicos, que também falavam uma linguagem incompreensível. E, em sua maioria, eram acusados de serem traficantes de drogas.  

O remédio da Casa Branca foi fechar a fronteira aos invasores com uma cerca a ser construída e prometer que os próprios mexicanos pagariam por ela. Em seguida, continuou dividindo as famílias dos que já haviam ingressado, colocou obstáculos no ingresso à universidade e retardou ao máximo a sua cidadania.

Os “americanos vitalícios” ficaram encantados. E o Partido Republicano ficou satisfeito com a renovação de suas cadeiras no Senado. Medidas arbitrárias que beiravam a inconstitucionalidade. Mas o objetivo de “fazer a América grande novamente” se converteu no slogan central.

Na Alemanha da ascensão de Hitler tudo estava subordinado ao mesmo fim de restaurar ou inventar as glórias do passado, aos acordes de uma ópera de Wagner. A ausência de qualquer questionamento sobre a soberania do Führer garantiu o cumprimento do roteiro.

Acreditar ser a melhor nação da Europa justificava a loucura da invasão da União Soviética, sem perceber que uma operação semelhante causou a queda de Napoleão. O Partido Nacional Socialista garantiu a ordem, e a SS herdou o papel dos camisas pardas para domar a Wehrmacht que havia engolido os militares profissionais, que não haviam digerido corretamente a derrota de 1918.

O desastre que começou em Stalingrado e culminou com as tropas russas hasteando a bandeira na cúspide do Reichstag foi devastado pelos bombardeios aliados que deixaram Dresden e Hamburgo em ruínas, povoadas por milhões de soldados errantes, enquanto os fornos dos campos de extermínio ainda cheiravam e um milhão de mulheres alemãs de todas as idades eram violadas. A sentença foi tão contundente que só assim os alemães aprenderam sua lição e se tornaram um modelo de cooperação na Europa e no mundo.

Mas se ignora como a implementação da mesma estratégia poderia ter terminado se o plano de desgoverno de Trump tivesse seguido o mesmo caminho. Agora, apenas os setenta milhões que votaram para “fazer a América grande novamente” estão em silêncio. Mas a SS no Senado Republicano e os recentes infiltrados na Suprema Corte também permanecem ilesos. É uma tarefa gigantesca de desnazificação para Biden, sem os julgamentos ao estilo de Nurembergue.    

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Foto por alisdare1 em Foter.com / CC BY-SA

Autor

Diretor do Centro da União Européia da Universidade de Miami. Professor Jean Monnet "ad personam". Graduado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor pela Georgetown University.

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