Coautor Danilo Uzêda da Cruz
Para entender o Brasil atual e os perigos que se aproximam, é fundamental considerar o avanço do autoritarismo. Não se entende este fenômeno sem considerar o golpe de 2016 e os anos de “lavajatismo”, a desconstrução das instituições e das políticas sociais, o esvaziamento da Constituição de 1988 e o tratamento criminoso da pandemia de Covid-19.
Neste contexto, a suspensão das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a suspeição do ex-juíz Sérgio Moro definidas no Supremo Tribunal Federal serviram para começar a reescrever a história daqueles anos, mas principalmente para estabelecer alguma rota de fuga para sairmos deste pesadelo.
A terceira via e o falso mito da polarização
Damos como fato consumado que não há “terceira via”. Por uma razão muito simples: não existe a polarização que o chamado “centro” e a grande mídia procuram fomentar entre uma “extrema-esquerda” e uma “extrema-direita”. Isto porque se o presidente Jair Bolsonaro é efetivamente de extrema-direita (próximo do fascismo), Lula está bem longe de qualquer extremo. Está de fato mais próximo do centro, e enquanto escrevemos estas linhas o já candidato segue em sua agenda de encontros com partidos conservadores, líderes neopentecostais e ex-presidentes.
Nunca houve o que temer de Lula, e toda a mistificação em torno do tema só demonstra a incapacidade das elites brasileiras em ceder uma migalha que seja de seus privilégios.
Se um candidato já é de centro-esquerda e ruma decididamente para o centro, não há “terceira via” possível. Só há dois candidatos viáveis e em condições normais Lula ganharia com facilidade.
A questão é que estamos muito longe de condições normais: estamos num país colapsado, no qual não sobrou muito das instituições democráticas. E no qual Bolsonaro já anuncia que se perder será devido a fraudes.
Neste contexto, o ideal é que o governo não termine, o que evitaria mais desconstrução democrática e mortes. Há razões para dezenas de impeachments. No entanto, sabemos que Bolsonaro mantém parte de sua popularidade, o apoio dos setores armados legais e ilegais, uma base parlamentar devidamente alugada e um Procurador Geral da República aliado e silencioso. Apesar dos protestos crescentes, dificilmente haverá impeachment. Então, por ora, tratemos de 2022.
O lulismo num contexto pior
É importante reconhecer os erros e limites do período lulista e, principalmente, alertar para as dificuldades que deverá enfrentar uma nova etapa lulista se esta for marcada pelo “passadismo”. Vivemos em outro Brasil comparado àquele de vinte anos atrás. Em diversos aspectos, um Brasil bem pior: precarizado, individualista, cínico, endurecido, convulsionado.
Se procurar reeditar o passado glorioso de um Brasil que não existe mais, o lulismo poderá no máximo bloquear o bolsonarismo, o desmonte do Estado e da democracia, enquanto luta para concluir o mandato. Isto já não seria pouco.
Frear a degradação, a necropolítica e o genocídio é o primeiro passo fundamental. Mas dificilmente haverá condições estruturais de relançar algum projeto de futuro. Isto só seria possível com renovação pelas bases, novas políticas públicas, uma política de “frente ampla” de partidos e movimentos sociais, um relançamento da participação social. E o principal: com muito povo nas ruas. Ainda há tempo?
Algumas questões ainda pesam nos ombros e estão no cardápio político das esquerdas, particularmente do lulismo como prática. As alianças com oligarquias regionais, conservadoras e fracionadas; um contraditório modelo de desenvolvimento, baseado numa confusa (e inviável) ideia de consenso entre setores historicamente desiguais; e práticas internas autoritárias, que foram causas de um declínio gradativo da esquerda como opção política para as massas.
A questão central é que esta dificuldade de dialogar com outras matrizes políticas do campo da esquerda não apenas isolou a esquerda partidária do restante da sociedade, como também abriu espaço para que o pensamento e prática conservadores ganhassem terra plana para avançar.
Cresceram no vazio de projeto deixado pela esquerda, preocupada demais com o pacto da governabilidade ou com o governo de coalizão, que ao fim mostrou-se esvaziado de sentido diante do golpe. É aqui que estamos presos, imersos em um pesadelo coletivo.
Dois problemas: os militares e Washington
Para além das necessárias revisões de projetos, devemos considerar os bloqueios que poderão vir. Antes de tudo o fator militar, e este especificamente implicará em dificuldades para a esquerda se eleger, tomar posse e governar. Estamos num governo militar – das Forças Armadas, das polícias e das milícias. Estes setores armados não aceitarão deixar o governo facilmente. Podem-se esperar denúncias de fraude, motins e violência policial contra manifestantes que saírem às ruas para garantir o respeito ao resultado eleitoral.
Não poderemos contar com nossas instituições em frangalhos como defesa. Será essencial produzir uma situação que desmonte antecipadamente a tentativa de golpe que virá. Antes disso, que garanta a própria realização de eleições – e a elegibilidade e a própria vida do candidato das esquerdas.
Para chegar lá e conseguir governar, não basta apenas negociar com todos. Isto Lula já está fazendo e, como um magistral encantador de serpentes, seguirá fazendo. Mas será fundamental haver pressão popular desde baixo e continuamente.
Há de se considerar também como Washington se comportará. Mesmo com Joe Biden no comando, depois de tanto lavajatismo e lawfare apoiado desde fora (e isto ainda nos tempos de Barack Obama) cabe esperar para ver como encarariam o delicado regresso do Partido dos Trabalhadores, ou mais precisamente do lulismo que paira acima de qualquer partido.
A necessidade de uma nova esquerda
No curto prazo, é necessário parar os crimes de Bolsonaro. No médio e longo prazo, precisamos de uma nova esquerda. Para voltar a falar a língua do povo, deve-se disputar com as direitas temas como religiosidade, solidariedade, família, violência. Como Lula pessoalmente sabe fazer.
Em meio à aparente contradição que cruza o debate latino-americano entre uma esquerda desenvolvimentista e outra ambientalista e identitária, é necessário construir pontes.
De todo modo, não é mais possível se manter nos limites do desenvolvimento econômico “clássico”, que está levando a humanidade a um beco sem saída, às portas do “fim do mundo”. Se deve evitar insistir em estratégias desenvolvimentistas depredadoras da natureza, que foram reeditadas inclusive pelo lulismo.
Mas qual será a alternativa? Será que um novo governo Lula tentará promover mais uma vez grandes obras, grandes eventos, extrativismo, agronegócio e crescimento pelo consumo? Ou haverá energias renovadoras emanando de novos movimentos, das juventudes, das novas universidades, das periferias, que poderão empurrar o país (e o lulismo) para um novo momento? Teremos uma reedição rebaixada e precária da Era Lula, ou uma nova etapa? Primeiro, temos que sobreviver até 2022.
Danilo Uzêda da Cruz Doutor em Ciências Sociais (UFBA), Historiador (UEFS). Pesquisador do DEPARE (UFBA) e do Periféricas (UFBA).
Autor
Professor de Ciência Política da Univ. Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Vice-diretor de Wirapuru, Revista Latinoamericana de Estudo das Idéias. Pós-Doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Univ. de Santiago de Chile.