Que a pandemia acelerou a digitalização da vida cotidiana, intensificando a canalização online das nossas atividades ou forçando uma migração para o mundo virtual de quem sustentava uma forma analógica de viver, não é notícia para ninguém. A leitura predominante e sem questionamentos sobre as consequências de médio e longo prazo disso é que o aprofundamento da vida ancorada na internet favorece a democratização da informação e comunicação assim como a facilitação de várias rotinas. Mas essa intermediação à distância via internet das nossas atividades do dia a dia não é neutra. Ela gera ganhadores e perdedores, aguça desigualdades sociais, reduz a troca de informações e dados pessoais à uma lógica de produção de valor para as empresas a cargo da mediação digital, e expande a vigilância e o controle comportamental sobre os indivíduos, o que corrói suas liberdades e direitos. É a advertência contida no conceito de “capitalismo de vigilância” elaborado principalmente pela cientista social Shoshana Zuboff.
Mas até que ponto essa perspectiva é percebida pelos cidadãos? Quais receios subsistem com o aprofundamento da digitalização das práticas e usos? Quem ganha e quem perde aos olhos dos usuários?
A naturalização da vida em redes
As mudanças ocorridas sob os confinamentos de 2020 e 2021 se projetaram a cada vez mais âmbitos como parte de uma nova realidade em 2022 e depois. Vários estudos apontam que sólidas maiorias acreditam que atividades educativas e de capacitação ficarão instrumentalizadas online (53%), que práticas de compras passarão a ser de e-commerce (54%), e que atividades cívicas como participar de abaixo-assinados ou audiências públicas ocorrerão, majoritária ou exclusivamente, pela via digital (58%).
A pesquisa Market Analysis/WIN Network realizada em 39 países, confirma essa tendência ao mesmo tempo que revela uma leitura ambígua do processo de mudança radical para a esfera online empurrada pela pandemia, e uma aceitação acrítica do chamado capitalismo de vigilância, onde nossos dados pessoais e todo tipo de registro de nossos comportamentos digitais tornam-se produtos valiosos para as empresas de tecnologia da informação.
A disponibilidade de informação pessoal para estranhos tal como gostos particulares, dados de família, formas de contato e monitoramento ou círculo de amigos, que dificilmente existiria nos encontros cara-a-cara dada a baixa confiança interpessoal existente (conforme apontam as pesquisas), é relaxada e liberada para o universo corporativo em função do valor agregado percebido na expansão da internet e da prevalente fé na tecnologia exibida pela sociedade.
Na amostra global, menos da metade dos entrevistados se dizem preocupados com o compartilhamento de informações nas redes sociais, oscilando minimamente de 47% ao término de 2019, antes da pandemia e da aceleração digital, para 48% até finais de 2021. Na América Latina esse olhar dividido é mais crítico: antes dos confinamentos, 55% admitiam receio de expor seus dados e opiniões online, resistência que caiu para 51% pouco antes de 2022.
O Brasil é uma exceção. Uma vasta maioria da sociedade brasileira sempre revelou preocupação com o compartilhamento de informações pessoais nas redes, que passou de 70% em 2019 para 72% em 2021. Esse dado de 2021 transforma o Brasil no líder em ceticismo digital a respeito do compartilhamento de informações pessoais nas redes, seguido pela China.
Para a perspectiva do capitalismo de vigilância, que enxerga o usuário de redes como objeto de explorações e lucratividade externa, o ceticismo pode ser uma fonte saudável de proteção. Por outro lado, a atual preocupação dos brasileiros parece ser decorrência mais da falta de consciência sobre o destino dos dados pessoais nas redes, do que uma experiência adversa navegando a internet ou uma crítica conceitual ao funcionamento controlador e extrativista da indústria de TI pelo qual os usuários produzem gratuitamente lucro para as companhias simplesmente por adentrarem os contextos digitais e, por meio de seu uso, gerarem sem custo para as empresas dados que alimentam os algoritmos, os quais são sabiamente monetizados em serviços que depois todos pagamos.
Um olhar benevolente e negligente sobre o ecossistema online
Com efeito, apenas metade dos brasileiros (49%) dizem ter ideia do destino dos seus dados compartilhados pública e gratuitamente na internet. No conjunto das sociedades da América Latina essa porcentagem é ainda menor, com somente quatro de cada dez (40%) afirmando ter ciência do que ocorre com os dados compartilhados na rede. Prévio à pandemia, essa sensação de controle sobre a ocorrência e uso dos dados pessoais era ainda menor (31% no Brasil, 32% na região latino-americana), sugerindo que o mergulho digital forçado pelas quarentenas induziu a uma suspensão dos receios e uma autoilusão benevolente na relação individual com as redes sociais.
De acordo com a pesquisa, ocorrências de risco como phishing, e-mail hackeado ou vazamento de dados pessoais não mudaram antes e depois da pandemia, variando dentro da margem de erro do levantamento. Mas houve aumento de cerca de 10 pontos percentuais no recebimento de spam e na incidência de contas de banco ou cartão hackeado, que afetaram mais os mais idosos, justamente a população menos alfabetizada digitalmente.
Mas isso não parece ser um obstáculo para o uso da tecnologia na vida cotidiana. A maior exposição a e colonização das nossas rotinas pelos canais online não refletiu em um aumento significativo do número de pessoas que se preocupam com a disponibilidade de seus dados nas redes. E mesmo com o aumento de alguns crimes cibernéticos e da baixa consciência sobre o destino desses dados, continuamos presenciando uma supervalorização dos meios digitais, com nove em cada dez brasileiros considerando a tecnologia da informação como um meio de alta importância na organização da vida.
A maior ascendência do ecossistema online fruto da ampliada mediatização da nossa vida através das redes sociais mal implantou a dúvida de se os indivíduos não estariam trabalhando gratuitamente para as Big Techs enquanto utilizam diariamente as plataformas digitais “sem custo” e alimentam seus algoritmos, ao tempo que se exporem para todo um novo conjunto de riscos reais. Nesse sentido, os dados revelam uma leitura mais otimista que pessimista, porém racional, na medida em que apontam para uma normalização do custo baixo sendo pago via a disseminação de dados pessoais e o potencial comprometimento da privacidade em troca da acessibilidade e conveniência remota favorecida pela internet.
Por outras palavras, a monetização da informação gratuitamente fornecida pelos indivíduos através das redes passa despercebida ou é naturalizada como um custo aceitável, apesar dos eventuais riscos, dados os benefícios do acesso digital. Isso não nega que maiorias de usuários exibam um certo ceticismo com relação ao compartilhamento de seus dados, mas essa reação não nasce de uma conscientização politizada aos moldes da crítica do capitalismo de vigilância, e, portanto, não se converte em uma busca ativa por formas de proteção da privacidade e segurança dos dados – que seriam próximos passos decisivos para a consolidação sustentável do que chamamos de democratização do acesso.
*Este texto foi escrito em colaboração com Ivan Albuquerque, Monize Arquer e Camila Cassis.
Fabián Echegaray é doutor em ciência política pela Universidade de Connecticut e diretor da Market Analysis, uma consultoria de opinião pública com sede no Brasil.
Ivan Albuquerque é cientista político pela UFSC e analista de pesquisa na Market Analysis.
Monize Arquer é cientista política pela Unicamp, professora na UFES e analista de pesquisa na Market Analysis.
Camila Cassis é cientista política pela Unicamp e analista de pesquisa na Market Analysis.
Autor
Fabián Echegaray é diretor da Market Analysis, uma consultoria de opinião pública sediada no Brasil, e atual presidente da WAPOR Latin America, o capítulo regional da associação global de pesquisa de opinião pública: www.waporlatinoamerica.org.