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El Salvador: um sistema de pós-guerra colapsado

El Salvador vive o colapso do seu sistema democrático pós-guerra, enquanto Bukele concentra o poder sob um modelo autoritário legitimado pela promessa de segurança.

Como El Salvador chegou a precipitar-se no abismo do autoritarismo e da erosão do Estado de direito atuais? O feudo da violência e a tirania política justificam tal resultado? Para dizer a verdade, o país nunca foi um remanso de paz. Desde sua independência da Espanha (em meados do século XIX), a violência endêmica faz parte de seu DNA: golpes de Estado, repressões militares, revoltas camponesas e massacres perpetrados pelo Estado.

Os ingredientes, portanto, já flutuavam na sopa primordial que nos leva ao turbulento século XX e XXI: a desigualdade social e a fraqueza dos órgãos do Estado contribuíram para a montagem das bases que sintetizaram o gene da violência onipresente, sendo a conflagração civil iniciada em 1980 uma das consequências.

Após os Acordos de Paz de 1992, El Salvador entrou em um pós-guerra que deveria concretizá-los. O país foi governado por ARENA (1989-2009) e FMLN (2009-2019). Os objetivos — desmilitarização, eleições livres e liberdade de expressão — fracassaram: persistiram a impunidade, a desigualdade e a fragilidade do poder. Não é de se surpreender, portanto, que a violência das gangues, a insegurança e a desconfiança nas instituições tenham minado a fé na democracia. Nesse poço de credibilidade e justiça surgiu o agora presidente Nayib Bukele, símbolo do esgotamento do sistema pós-guerra.

Bukele: “outsider, ma non troppo”

Embora Bukele se apresente como um recém-chegado alheio à casta política, um homem moderno, do povo, hiperativo nas redes sociais — às vezes um troll humano —, a verdade é que ele navegou confortavelmente na política tradicional: foi prefeito pelo FMLN (nada menos que da capital) graças aos laços e recursos de sua família abastada. Sua expulsão do partido foi uma fuga para a frente para se reinventar como antisistema, mas na realidade ele é um homem do sistema. Bukele soube usar de forma magistral a fachada de independente para consolidar seu poder, com suas próprias redes de privilégios, corrupção e clientelismo que enriqueceram sua família desde que assumiu as rédeas do país. Hoje, ele exerce esse controle mediante a submissão do poder judiciário e da opacidade no uso de fundos públicos e/ou do bitcoin, motivo pelo qual foi sancionado pelos Estados Unidos. Depois veio Donald Trump.

O bukelismo, em busca de rótulos

Seu modelo tem componentes do que chamo de orbanismo (em sua vertente tropical), em referência a Viktor Orbán, presidente da Hungria, que usa sua vitória eleitoral como uma espécie de revolução querida pelo povo, que lhe dá carta branca para a concentração do poder e o desmantelamento da institucionalidade democrática, embora sem tocar no sistema em si, por meio do controle do poder judiciário e legislativo. A isso se soma o punitivismo, baseado na repressão e na mão dura contra as gangues para ganhar popularidade, aparentando eficácia na segurança enquanto mantém redes de privilégios e corrói as liberdades civis. A vitória do bukelismo reside em impor a dicotomia direitos humanos contra segurança, apresentando-a como um fato consumado, fora de qualquer discussão.

A fórmula contém, da mesma forma, um autoritarismo consistente em regimes de exceção permanente que justificam detenções massivas e/ou arbitrárias e violações sistemáticas dos direitos humanos. O bukelismo também recebeu o apelido de autoritarismo popular, que se liga a uma tradição de caudilismo que se enraizou e prosperou na região: votar nele não é algo novo.

“Conquistas” com truques

Bukele se gaba de ter reduzido a violência com sua “mão dura”. No entanto, isso não é original: já existiram os planos Mano Dura e Súper Mano Dura no início do século. Mas, na realidade, trata-se de uma mão dissimulada, esquerda e branda: a simples negociação com as gangues MS-13 e Barrio 18 (as mais importantes, embora não as únicas). Dois de seus líderes afirmaram que, desde 2014, Bukele fez um pacto com eles, oferecendo benefícios penitenciários e dinheiro em troca de apoio eleitoral, que se materializou por meio do controle territorial das gangues para coagir o voto e reduzir temporariamente os homicídios, melhorando assim a imagem do então candidato.

De agentes e Constituições: o aprofundamento de Bukele no autoritarismo

Dois marcos marcaram 2025, um ano fértil no capítulo da gradual desintegração das instituições democráticas: a reforma da Constituição e a Lei de Agentes Estrangeiros.

Quanto à reforma constitucional, ela já tem sido um recurso comum no Peru, na Colômbia, na Nicarágua, na Venezuela ou na Hungria, representando uma tendência a confundir Constituição com programa eleitoral.

Em 31 de julho de 2025, a Assembleia Legislativa de El Salvador aprovou uma reforma expressa da Constituição com traços muito orbanianos, a saber: usou a ampla maioria do Nuevas Ideas — partido de Bukele — no Parlamento como um rolo compressor, sufocando todo o debate da oposição (com prazos exorbitantes) e, por fim, confundindo intencionalmente uma constituição com uma plataforma eleitoral.

A “Constituição de Bukele” apresenta os seguintes marcos: 1) permite a reeleição presidencial indefinida; 2) amplia o mandato presidencial de cinco para seis anos; 3) elimina o segundo turno, que em um sistema presidencial reduz as garantias de representatividade e legitimidade do presidente eleito; 4) antecipa o início do próximo mandato em dois anos, a fim de sincronizar as eleições gerais com as eleições legislativas e municipais de 2027: tudo a serviço de Bukele. A reforma estabelece, na prática, um novo sistema político, um golpe silencioso que mina os princípios da alternância e da limitação do poder consagrados na Constituição de 1983, reforça a concentração de poder e diminui a alternância e o equilíbrio de poderes entre os ramos do governo, essenciais a qualquer padrão democrático.

Outro evento jurídico decisivo de 2025 é a Lei de Agentes Estrangeiros, aprovada via Decreto nº 308. A influência de Vladimir Putin é inegável, como se vê nas suas leis de 2012 (alteradas em 2022 e 2025). A lei georgiana de 2023 é praticamente uma cópia fiel da russa e, sem dúvida, inspirou Trump através das suas ordens executivas.

A lei salvadorenha tem o mesmo nome que a russa, e os conspiracionistas mais notórios devem estar satisfeitos, visto que a lei salvadorenha foi aprovada em 30 de maio de 2025 e a alteração russa em junho. Em qualquer etapa, fica claro que ambas as leis compartilham os mesmos objetivos: controlar e estigmatizar organizações que recebem financiamento estrangeiro. No entanto, há uma diferença: a lei salvadorenha é ainda mais agressiva que a russa em termos de sanções econômicas.

A Lei de Agentes Estrangeiros de El Salvador (2025) estabelece diversas medidas que minam qualquer estrutura democrática: 1) exige que indivíduos e organizações que recebem financiamento do exterior se registrem como “agentes estrangeiros”; 2) impõe um imposto de 30% sobre esses fundos; 3) estipula severas penalidades econômicas para o descumprimento; 4) usa uma linguagem ambígua que pode levar a restrições ainda maiores à liberdade de associação e expressão; 5) estigmatiza organizações de direitos humanos e a sociedade civil (resultando na perseguição e detenção de ativistas), forçando-os a cessar suas atividades. A consequência imediata é que importantes ONGs, como a Cristosal, não operam mais em El Salvador, mas sim em Honduras e Guatemala. A mídia também está entre as mais afetadas. Assim, a APES (Associação de Jornalistas de El Salvador), fundada em 1936 e com longa tradição, e jornais como El Faro adotaram medidas similares.

A Lei de Agentes Estrangeiros gerou profunda preocupação internacional, com a ONU instando à garantia de um ambiente seguro para a sociedade civil e ao respeito aos direitos humanos. Da mesma forma, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a União Europeia (UE) criticaram a lei salvadorenha, provocando a ira de Bukele. Em seu estilo característico, pontuado por (antigo) tweet, o líder salvadorenho repreende a UE por ser um bloco antiquado, burocrático, dependente de energia e tecnologicamente atrasado, que ainda se atreve a dar lições ao mundo. É um final apropriado para este artigo: resume perfeitamente o modus operandi discursivo de Bukele, enumerando as deficiências da UE compartilhadas por seus homólogos de extrema-direita no continente europeu.

Tradução automática revisada por Isabel Lima

Autor

Historiadora e doutora em Ciências Jurídicas e Sociais com especialização nos Balcãs pela Universidade de Málaga. Mestre em História pela Universidade de Granada.

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