Se há algo que caracteriza a democracia uruguaia, é sua harmonia, quase como um reflexo de sua própria geografia. O Uruguai é, em suma, uma pradaria em todos os sentidos. Mesmo quando o sinal político varia, os governos não buscam o radicalismo e, no momento, o país parece estar mais ou menos blindado contra figuras disruptivas que buscam choques mais do que a convivência. O Uruguai é um caso sui generis, sim, mas não está isento de críticas e particularidades.
No domingo, 27 de outubro, os cidadãos uruguaios voltaram às urnas em uma eleição nacional. De momento, os resultados não são novidades, após não alcançar os 50% + 1 necessários para vencer no primeiro turno, a presidência da República continua em disputa entre o candidato da Frente Ampla, Yamandú Orsi, e o candidato do Partido Nacional, Álvaro Delgado. Assim, o país ainda tem algumas semanas pela frente antes do segundo turno, em 24 de novembro.
Orsi lidera a coalizão de esquerda que, pela quinta vez consecutiva, se posiciona como a força política mais votada, alcançando 43,9% dos votos, enquanto Delgado aspira a transformar seus 26,7% em maioria, apostando na renovação da coalizão de centro-direita que permitiu a Luis Lacalle Pou chegar ao poder em 2019 e que é composta, além do Nacional, pelos partidos Colorado, Cabildo Abierto e Independiente.
No entanto, o cenário não pode ser tão facilmente elucidado. Com base em uma soma linear de votos, a coalizão supera a porcentagem da esquerda, mas isso também significa subestimar as decisões do eleitorado.
Na noite da eleição, as estratégias dos candidatos presidenciais começaram a tomar forma, com Orsi apostando na unidade nacional e Delgado insistindo em dar continuidade ao projeto político da coalizão, além de reconhecer a liderança de Lacalle Pou. A mensagem que os cidadãos receberam dos candidatos foi diferente, tanto em termos de discurso quanto de apresentação: Orsi abraçou sua companheira de chapa, Carolina Cosse, dando-lhe a palavra primeiro, e Delgado procurou se apresentar como líder, reconhecendo primeiro os parceiros da coalizão, depois o Partido Nacional e, por fim, sua companheira de chapa, Valeria Ripoll.
Até certo ponto, essas nuances são um reflexo das prioridades na hora de construir um governo. O fato de ser oposição permitiu que a Frente Ampla aprendesse com seus erros, a começar pela composição de sua chapa presidencial. Colocar Cosse como sua vice é reconhecer uma figura de grande relevância política e, de certa forma, saldar a dívida de 2019. Ao contrário, o Partido Nacional gerou dissidência interna quando Delgado escolheu Ripoll, uma novata com um passado sindical e de militância de esquerda. O candidato apostou em uma figura capaz de ser absolutamente crítica à Frente Ampla, mesmo que tenha conquistado o desencanto de seus militantes.
Governabilidade sim, governabilidade não: a composição do Parlamento
A questão da paridade nos cargos eleitorais ainda é difícil no Uruguai. 92 anos após a aprovação do sufrágio feminino, esta é apenas a segunda eleição em que a vice-presidência será ocupada por uma mulher (sem contar Lucía Topolansky, que assumiu o cargo após a renúncia do titular, Raúl Sendic, em 2017). Ao contrário da atual titular, Beatriz Argimón, que ocupa cargos na legislatura desde 2000, as novas aspirantes ao cargo têm pouca ou nenhuma experiência parlamentar.
No entanto, o apoio legislativo de ambas é totalmente diferente. Cosse, de antemão, parece ter algumas vantagens para liderar o Senado, já que a Frente Ampla obteve a maioria nessa Câmara com 16 cadeiras de 30, em comparação com as 9 do Partido Nacional e as 5 do Partido Colorado. Por outro lado, Ripoll começará com uma minoria tanto de seu partido quanto da “coalizão multicolorida”, além de possíveis complicações de convivência devido à sua própria história política.
Com relação à trajetória dos Senadores eleitos, 26 dos 30 titulares têm experiência em nível legislativo, e os recém-chegados são figuras de destaque: Andrés Ojeda e Robert Silva (que até domingo eram a chapa presidencial do Partido Colorado), a própria Carolina Cosse (que foi eleita senadora no mandato anterior, mas deixou o cargo para assumir a chefia da prefeitura de Montevidéu) e a mítica jornalista que se tornou política, Blanca Rodríguez (referida no jargão como “a última jogada de José Mujica” para recuperar parte do eleitorado perdido). Embora isso também reflita a tradição democrática do Uruguai e a quase impossibilidade de pessoas de fora entrarem na política, o legislativo não é totalmente seguro.
A Câmara dos Deputados é composta por 99 assentos, 48 para a Frente Amplio, 49 para a Coalizão Republicana e os outros dois assentos para a Identidad Soberana. Este último parece ser a grande novidade, um partido fundado em 2022 e cujo líder – e deputado eleito – Gustavo Salle ganhou notoriedade por sua maneira peculiar de fazer campanha com um megafone e um discurso “antissistema”: contra a agenda 2030 e contra os direitos conquistados na era progressista, como a descriminalização do aborto, a lei sobre violência de gênero e a lei de irrigação, entre outros. Em sua primeira aparição após os resultados, Salle disse que seu partido está entrando “na caverna da vendepatria”. E, embora tenha dito posteriormente que moderaria seu discurso, Salle, mais do que uma figura colorida, é um alerta contra posições extremistas que poderiam afetar a governabilidade.
O Uruguai ainda não escolheu quem comandará o Executivo, mas independentemente de optar pela continuidade ou apostar na mudança, o grande jogo será no Palácio Legislativo, cujo poder e capacidade nunca devem ser subestimados. Em um governo que tomará posse em 2025, 40 anos após a restauração da democracia, o Poder Legislativo será o cenário de consenso e desacordo. É aí que o foco deve ser colocado.
Autor
Internacionalista formado pela Universidade da República. Pós-graduado em Comércio Internacional (Universidade de Montevidéu) e mestre em Ciência Política (Universidade Torcuato di Tella).