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Em direção ao capitalismo autoritário na Venezuela?

Nos meios de comunicação internacionais, o governo venezuelano segue sendo mencionado frequentemente com o prefixo “socialista”. Dentro do país, um processo de desregulação desordenada está abrindo mais espaço para o mercado, mas também está criando novas e aparentes desigualdades. Para que tipo de sistema econômico se dirige a Venezuela? Dada a escassez de dados públicos, começamos a realizar pesquisas em três âmbitos da economia, na esperança de contribuir com algumas peças para o quebra-cabeça que supõe o real funcionamento da economia venezuelana atual. O que encontramos foi mais um capitalismo predatório e autoritário do que um socialismo.

A ascensão global do capitalismo autoritário

É evidente que capitalismo não é o mesmo sistema em todo o mundo. Embora sempre envolva uma atividade lucrativa por parte de atores privados, o capitalismo é regulado de diferentes maneiras e com diferentes finalidades. A maioria dos países reserva alguns espaços, como a saúde, a educação e o cuidado das crianças, para que sejam regidos por outros princípios que não sejam o lucro, e veem algum tipo de envolvimento do Estado na economia. 

Os acontecimentos recentes têm deixado muito claro que não existe uma associação automática entre capitalismo e democracia. Pelo contrário, temos visto o auge dos sistemas capitalistas em países autoritários de todo o mundo, incluindo, é claro, a China. Outra dimensão que distingue os distintos sistemas capitalistas é a solidez das instituições. Em Estados com instituições débeis, é difícil tornar uma economia voltada ao lucro compatível com objetivos sociais, como proporcionar um certo nível de bem-estar para todos.

No entanto, as instituições fracas podem coexistir com governos autoritários que tentarão dirigir a economia de forma a reforçar seu controle político e compensar a fraqueza das instituições. É o caso de países nominalmente socialistas que podem empregar formas de reforma de mercado a mando dos dirigentes políticos para seu benefício e o de seus aliados próximos.

Com uma equipe coordenada por Manuel Sutherland, diretor do Centro de Investigación y Formación Obrera e Formação do Trabalho (CIFO) e supervisionado por Antulio Rosales, da Universidade de New Brunswick, e por mim, realizamos três pesquisas que tentaram fornecer informações sobre diferentes aspectos da nova economia. Como se relaciona com o processo ad hoc de desregulamentação da economia? Como as pessoas sobrevivem no que se tornou uma economia de alto custo, mas em que os salários ainda são “de fome”?

A mineração ilegal

A primeira parte da investigação foi um levantamento dos trabalhadores da mineração ilegal no estado de Bolívar. Como uma forma de enfrentar a diminuição das receitas da produção de petróleo, em 2016 o governo Maduro estabeleceu a zona especial de desenvolvimento Arco Minero del Orinoco (AMO), com o objetivo de formalizar alianças e atrair novos investimentos no estado de Bolívar.

Com isso, o Estado aumentou sua presença na zona. No entanto, continuaram as práticas informais de controle territorial existentes por parte dos grupos armados e aumentou a produção e venda ilegal de ouro. Em nossa pesquisa com trabalhadores da zona, descobrimos que eles suportavam jornadas laborais de 12 horas ou mais. Na maior parte das vezes eles eram pagos em gramas de ouro. Não existiam formas de proteção social e respondiam a uma combinação de bandos locais, guerrilhas, máfias e Guarda Nacional.

Todos esses atores se dedicam à extorsão, cobrando aos trabalhadores “vacinas” (dinheiro de proteção), em um predatório sem lei. As extorsões se somam ao custo extremo da vida na zona, com preços de 4 a 5 vezes superiores aos das áreas centrais do país, devido a uma série de obstáculos ao mercado.

A nova cara da desigualdade: os bodegones

A realidade das zonas de mineração ilegal contrasta fortemente com a dos novos comércios de importação, os chamados bodegones. Como forma de enfrentar a escassez generalizada de bens e a inflação associada, a proibição da troca privada de dólares foi flexibilizada.

Em 2018, a Assembleia Nacional Constituinte, controlada pelo governo, revogou a Lei de Ilícitos Cambiais. Isso significou o fim dos controles de divisas e a bênção governamental para a dolarização informal. Isso, e várias isenções temporárias de tarifas e as regulações de importação, permitiram as importações de bens em grande escala, incluindo os chamados serviços “porta a porta” – a importação direta de bens por parte de pessoas privadas sem nenhum tipo de tarifas ou regulamentações sanitárias.

Este é o pano de fundo da aparição dos chamados bodegones, que começaram com pequenas lojas que vendiam produtos importados em alguns poucos lugares de luxo na capital. Com o tempo, estes evoluíram para se tornar em um fenômeno nacional e incluíram enormes supermercados em zonas urbanas em todo o país que vendiam tanto alimentos normais como uma ampla variedade de artigos de luxo.

Ao final de 2020, realizamos 81 entrevistas com responsáveis pelos bodegones e 103 clientes em 73 bodegones, dos 613 que se estimava que existiam nesse momento. Se encontravam em bairros de luxo dos estados de Aragua, Miranda, Mérida, Barinas e Zulia, além da Capital. A maioria dos estabelecimentos (81%) se estabeleceu depois da dolarização, e 47% tinham menos de dois anos.

A maioria dos proprietários não tinha experiência prévia no comércio varejista, o que indica que esse é um negócio que pode contribuir para estabelecer uma nova classe de empresários. Os bodegones são claramente uma das expressões da crescente importância do dólar. Comprovamos que, embora 66% das compras eram realizadas na moeda nacional, se tratava de compras menores, equivalentes a 1 ou 2 dólares. Os elevados montantes eram pagos em dólares.

Curiosamente, a maioria dos trabalhadores dos bodegones (56%) recebem seus salários em bolívares, e só 12% em dólares ou euros. Os salários, embora sejam significativamente mais altos que o salário mínimo e o que se paga no setor público, também são baixos: 73% ganham menos de 60$ por mês e 33% ganham entre 20$ e 40$.

Os preços dos bodegones vão do relativamente razoável, até o extremo. No entanto, os preços gerais são elevados apesar dos bodegones não pagarem impostos nem tarifas, devido em parte à supervalorização da moeda. Como norueguês, achei quase cômico encontrar salmão norueguês em sua embalagem original com texto em norueguês a um preço quatro vezes maior do que o que eu teria que pagar no meu caro país de origem.

Uma refeição familiar de salmão custaria o equivalente ao salário médio mensal de um dos trabalhadores no mesmo bodegón onde era vendido. Assim, em muitos aspectos, os bodegones são a cara das novas desigualdades. São propriedade de um grupo de novos empresários que ganham a vida vendendo produtos de luxo em um mercado não regulado para clientes de alto nível a preços totalmente proibitivos para a maioria das pessoas.

A sobrevivência no setor público

O terceiro aspecto que estudamos são as estratégias de sobrevivência dos trabalhadores do setor público. Nossa equipe realizou 207 entrevistas com funcionários públicos de 68 instituições diferentes em 8 estados, sobre uma série de questões, como salários, as estratégias de sobrevivência e a politização do lugar de trabalho. E quanto aos salários, 47% ganhavam menos de 6 dólares ao mês; 83% ganhavam menos de 15 dólares ao mês. A maioria também recebia um salário em espécie na forma de alimentos, mas em 47% dos casos, valia menos de 1$ ao mês.

Levar a controversa “carteira da pátria” controlada pelo governo significava para muitos uma bonificação adicional. No entanto, em dois terços dos casos era menos de 10$ por mês, e para a maioria muito menos.

Quase todos eles complementavam seu salário de uma forma ou de outra. Dos entrevistados, 68% tinham cargos adicionais ou seu próprio negócio. Mais de 70% permaneceram no posto de trabalho essencialmente como meio de manter certa estabilidade ou de acessar contatos políticos, à espera de tempos melhores. Quando questionados sobre a formação no posto de trabalho, só 34% dos informantes disseram ter recebido alguma, e a maioria deles só havia recebido formação ideológica (em 85% dos casos). 

A imagem que se desprende de nossa pesquisa, certamente limitada, é a de uma forma de capitalismo bastante fragmentada em que alguns espaços estão abertos à concorrência privada, mas em que a regulação é politizada e as oportunidades para a maioria das pessoas são escassas.

Os espaços para a produção e o intercâmbio capitalistas se ampliaram ainda mais à medida que a lei anti-bloqueio adotada em 2020 se abriu para a privatização em grande escala de empresas públicas, beneficiando sobretudo os aliados do governo. Recentemente, o país abandonou o terceiro período mais longo de hiperinflação já registrado, e viu um ligeiro aumento na produção de petróleo e foi registrado um crescimento econômico enquanto a dolarização continua.

Tudo isso enquanto o governo de Maduro se fortaleceu no poder, e a democracia segue maltratada, com o país celebrando eleições em sua maioria injustas e escassamente competitivas que não disputam o poder do executivo.

Nossas pesquisas abrem uma série de perguntas adicionais sobre para qual modelo econômico a Venezuela está se movendo. Onde os clientes dos bodegones conseguem seus dólares? Quais são as novas elites que controlam os negócios emergentes? Quão profundas são realmente as desigualdades na economia?

É muito cedo para tirar conclusões sobre essas grandes perguntas. Com a recém adotada Lei de Imposto às Grandes Transações Financeiras (IGTF), que agrega um imposto a transações em divisas ou criptomoedas, pode-se produzir novas mudanças. Mas o que é certo é que o sistema atual tem mais características de um capitalismo autoritário do que do socialismo democrático que os chavistas aspiravam instaurar a princípio.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Autor

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Cientista política. Professora no Centro de Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade de Oslo. Presidenta do conselho diretivo do Instituto Nórdico de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Estocolmo. Especializada em elites e economia política.

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