O aprofundamento da crise em vários países da América Latina, nos últimos meses, expôs a relação intrínseca entre estabilidade política e corrupção. Uma associação indissolúvel na qual ambas as condições fluem de modo coordenado e na qual basta a presença de uma para provar a existência da outra. Um relacionamento que dura séculos e está profundamente enraizado na América Latina.
A corrupção, a mais constante das condições, pode se manifestar de diferentes maneiras -da timidez, quando se limita basicamente aos sistemas burocráticos, ao atrevimento, quando se infiltra no, e se apodera do, sistema político. Mas em suas manifestações mais extremas, pode chegar a afetar os países de forma generalizada, até alcançar aquilo que se conhece como corrupção sistêmica.
Nesse último caso, “a capacidade do Estado para cumprir suas funções básicas se vê minada, e os custos adquirem importância macroeconômica”, de acordo com o artigo “Corrupção na América Latina: Um Balanço”, publicado no blog Dialogo, do Fundo Monetário Internacional (FMI).
A relação intrínseca entre estabilidade política e corrupção, muitas vezes imperceptível, ficou evidente em nossa região nos últimos anos. De acordo com o edição 2018 do Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional, que classifica os 180 países do ranking de acordo com o nível percebido de corrupção do setor público, há três países da região entre aqueles que atingem menos de 25 pontos, em uma escala de um a 100: Venezuela, Haiti e Nicarágua, os países latino-americanos mais instáveis politicamente nos últimos anos.
A Venezuela, que ocupa o último lugar do ranking, vive há cinco anos uma crise política, econômica e social que foi se radicalizando e recentemente desembocou no reconhecimento por boa parte da comunidade internacional do presidente autoproclamado Juan Guaidó, para alcançar uma transição política que ponha fim ao regime de Nicolás Maduro.
O Haiti, por sua vez, sofre uma crise profunda e generalizada que no mês passado arremessou o país ao caos. À catástrofe econômica, que se aprofundou ao longo de 2018 devido à depreciação da moeda e à crise na eletricidade causada pela escassez de gasolina, veio se somar um escândalo de corrupção associado à malversação de US$ 2 bilhões provenientes do programa Petrocaribe, que mancha não só o atual presidente mas os seis governos que o precederam de 2008 em diante.
E na Nicarágua, o terceiro mais corrupto entre os países da região, o regime de Daniel Ortega e a oposição estão tentando de novo chegar a um acordo que ponha fim à grave crise econômica e política que o país atravessa já há um ano, quando estouraram protestos contra o governo que resultaram em mais de 300 mortes
A percepção de corrupção em países como Chile, Costa Rica e Uruguai é semelhante à das economias avançadas, o que se traduz em indicadores positivos de saúde institucional e bom governo”
Ainda que esses indicadores de percepção de corrupção na região continuem em nível crítico, “as médias regionais ocultam um amplo grau de variação entre países”, de acordo com o relatório do FMI. A percepção de corrupção em países como Chile, Costa Rica e Uruguai é semelhante à das economias avançadas, o que se traduz em indicadores positivos de saúde institucional e bom governo.
No Uruguai, o país mais transparente da região, o vice-presidente Raúl Sendic teve de renunciar ao seu posto em 2017, sob imensa pressão política, social e da mídia, devido à controvérsia em torno de uma empresa estatal de petróleo que ele dirigiu no passado, a um diploma não comprovado, e ao uso indevido de cartões de crédito empresariais durante seus anos no comando da estatal, o que resultou em processo judicial contra ele mais tarde.
No meio do caminho entre esses extremos fica a maioria dos demais países latino-americanos. Governos que se caracterizam por contar com leis deficientes, falta de transparência fiscal, marcos inapropriados de contratação e investimento público e má gestão das empresas estatais. Basicamente, contextos ideais para a incubação de casos imensos de corrupção como os da Petrobras e Odebrecht, com ramificações em toda a região.
A explosão desses escândalos, que demonstra em alguma medida os avanços registrados na região, não só volta a expor o saque dos bens comuns por parte dos setores da sociedade como altera a frágil estabilidade política de muitos dos países da região. E dessa maneira, novas manifestações, confrontos, repressão e assassinatos voltam a provar a relação intrínseca que existe entre a estabilidade política e a corrupção.
Autor
Jornalista, mestre em Jornalismo pela Universidade de Barcelona e em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Complutense de Madrid.