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Guatemala: entre bloqueios e trincheiras

A Guatemala vive uma situação de forte tensão como não se via há várias décadas. É uma situação criada por uma classe política tradicional que esticou a corda o máximo que pôde e parece que está prestes a arrebentá-la. Houve vários eventos que levaram ao que acontece hoje no país hoje; para começar, mediante disposições arbitrárias disfarçadas de legais, não tivemos uma renovação das cortes em quase quatro anos. Argumentos supérfluos, como não terem discutido o suficiente no Congresso da República os perfis de quem integraria o sistema de justiça, levaram ao enraizamento de uma classe política tradicional acostumada, desde a transição democrática em 1985, a fazer as coisas mediante a suborno, sobrepreço e corrupção, e a ocupar posições-chave nos três poderes do Estado, o que alguns chamaram de “pacto dos corruptos”.

A isso se somou um Ministério Público (MP) que atuou mediante uma política de perseguição a qualquer voz que discorde dessa aliança, o que levou um número significativo de pessoas, entre jornalistas, comunicadores, juízes, promotores e defensores de direitos humanos, a se encontrarem hoje no exílio ou privados de sua liberdade. A razão parece ser uma espécie de pêndulo aprimorado do que a Comissão Internacional Contra a Impunidade (CICIG) fez até 2019, na época uma perseguição com substância, mas sem muitas formas, a alguns atores do status quo. O resultado foi uma alta polarização social, com sentimentos de classe muito elevados entre o que muitos entendem principalmente como esquerda e direita, sem análises muito sólidas, mas que são usados para justificar ações e discursos de um lado ou de outro.

Também devemos nos lembrar de como chegamos ao início de 2023. Naquela época, houve um grande questionamento das autoridades eleitorais, em específico os magistrados plenos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por uma série de interpretações muito particulares do arcabouço jurídico-normativo relacionado à esfera eleitoral, que implicou no não registro de candidatos. Esse foi o caso do Movimento de Libertação Popular (MLP), cujo candidato a vice-presidente, Jordán Rodas, supostamente não recebeu a indenização correspondente por ter sido Defensor dos Direitos Humanos (PDH) e que, a partir dessa posição, teve uma relação pouco próxima com a classe política tradicional do país.   

Há também o caso do partido Prosperidade Cidadã (PC), que ninguém tinha em seu radar até que liderou a primeira pesquisa séria do país, provavelmente por seu bom manejo das redes sociais e da proximidade que demonstrou com o povo. Embora seu candidato presidencial não fosse necessariamente muito diferente em termos ideológicos, não era um personagem fácil de controlar para essa classe política que estamos discutindo; como resultado, surge uma denúncia de que sua assembleia geral não havia sido realizada conforme de acordo com a lei e, portanto, todas as suas demais assembleias foram anuladas. No total, 1.351 candidatos não puderam participar de diferentes cargos eletivos e o candidato Carlos Pineda, que liderava as pesquisas, saiu do processo eleitoral. Vale ressaltar que foi Manuel Baldizón, ex-candidato presidencial, condenado nos EUA por lavagem de dinheiro e que foi libertado em 2022, o cidadão que apresentou a denúncia.

Há outros casos, como o de não permitir a participação de Roberto Arzú, filho do ex-presidente Álvaro Arzú (RIP), que foi acusado de campanha antecipada. Algo que praticamente todos os candidatos fizeram no último ano, disfarçando-o de campanhas de filiação e distorcendo a Lei Eleitoral e de Partidos Políticos (Decreto 1-85), foram somando pontos de conflito e dificuldades para enfrentar o processo eleitoral que começou em janeiro de 2023 com a convocação de eleições.

Apesar de tudo, 60,08% dos guatemaltecos decidiram votar em 25 de junho, com vários candidatos fora do menu político que nos foi apresentado para escolher. Discursos da classe política tradicional, bastante conservadores e amparados em um falso cristianismo (cristãos verdadeiros não roubam), foi apresentado como opções para manter uma linha conservadora no país, sem sustento ideológico além do marketing político de uma figura, nem mesmo de um projeto político.

O resultado foi que, nas eleições presidenciais, o primeiro lugar ficou com o voto nulo, com 17,38%, o que comprova a rejeição à maioria dos políticos tradicionais do país. Em seguida, Sandra Torres (15,86%), da Unidade Nacional de Esperança (UNE), um partido que originalmente era social-democrata e hoje é só mais um catch all party, mas com a maior estrutura partidária a nível nacional, e Bernardo Arévalo (11,77%), do Movimiento Semilla, um partido progressista de centro-esquerda, que não estava no radar de analistas e políticos, chegaram às urnas.

A partir desse momento, começaram a questionar os resultados eleitorais. Bernardo Arévalo era um personagem incômodo, pois pertence a um partido pequeno e novo, que tentou ser diferente do resto dos políticos tradicionais; em alguns aspectos, foi bem-sucedido, em outros nem tanto, mas obviamente não faz parte do eixo de partidos políticos tradicionais.

No segundo turno, se confirmou a vitória de Arévalo (58,01%) sobre Torres (37,24%), o que resultou em uma série de ações por parte do MP para tentar desacreditar o processo eleitoral, que chegou ao ponto de não retorno em 1º de outubro, quando retiraram do TSE as atas que continham o trabalho dos órgãos eleitorais temporários, formados por cidadãos respeitáveis e voluntários de diferentes departamentos e municípios do país, em um mecanismo no qual os votos são contados de maneira pública diante de fiscais dos partidos políticos.

O que se mencionou foi a existência de um plano por parte das autoridades do atual governo, em coordenação com os outros dois poderes do Estado e uma Corte Constitucional bastante afim, para anular o processo eleitoral e repeti-lo com candidatos que geram comodidade à classe política tradicional, cancelando o Movimento Semente por uma investigação por assinaturas falsas entre seus afiliados para se constituir como um partido (ironicamente denunciado pelo próprio Bernardo Arévalo), passando por uma eleição interina de um de seus personagens para assumir a direção dos destinos do país como presidente provisório.

Isso levou a uma série de bloqueios a partir de 2 de outubro, originalmente iniciados pela organização indígena 48 Cantones de Totonicapán para exigir a destituição da atual procuradora-geral e chefe do MP, Consuelo Porras, e do Fiscal Especial Contra a Impunidade (FECI), Rafael Curruchiche. Com o passar dos dias, diferentes atores e setores se uniram em todo o país. Foram contabilizados mais de 190 bloqueios, e deve-se observar que não houve casos conhecidos de repressão por parte das forças de segurança.

Entretanto, está claro que há uma falta de liderança por parte do Presidente Alejandro Giammattei para tentar buscar mecanismos imediatos de resolução do conflito. Foram necessários quase oito dias para que ele aparecesse em uma mensagem em cadeia nacional, na qual falou sobre o que inevitavelmente aconteceria, alguns saques cometidos por infiltrados, o abuso de bloqueios para limitar o direito constitucional de livre circulação, a escassez de produtos e seu iminente aumento de preço, entre outros.

O governo central solicitou a participação da Organização dos Estados Americanos (OEA) para tentar um acordo entre as partes cinco dias depois. Apesar da alta qualidade das pessoas enviadas, o que se observa é que não há clareza sobre com quem negociar. 48 Cantones não é o líder nacional dos bloqueios, pois muitos deles surgem de forma espontânea e com apoio popular. Por outro lado, a petição inicial de renúncia da Procuradora Geral do MP nem sequer foi mencionada pelo Presidente Giammattei, e ela mesma disse que não deixará o cargo.

Como observou o internacionalista guatemalteco Roberto Wagner, cada grupo está em sua própria trincheira e não quer sair dela, sem disposição para negociar. Soma-se a isso um presidente eleito, Bernardo Arévalo, que não dá sinais de que vai convocar um diálogo imediato e liderar uma transição muito mais ordenada, considerando que os bloqueios afetam o país em última instância e demonstram a forma primitiva de política em que a Guatemala caiu, em que os direitos de alguns são exigidos com o sacrifício dos de outros.

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Professor e pesquisador da Escola de Governo da Guatemala. Doutor em Administração Pública e Políticas Públicas pelo Instituto Nacional de Administração Pública (INAP). Especializado em questões sociopolíticas da Guatemala e América Latina.

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