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Haiti: refém de organizações criminosas

O Haiti segue afundando-se no abismo da insegurança e da ingovernabilidade. Recentemente, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos revelou que nos três primeiros meses de 2023, 530 pessoas foram assassinadas e 281 sequestradas no marco da violência de quadrilhas. As autoridades haitianas já mostraram sinais de impotência diante ao poder militar destas organizações criminosas, e porta-vozes do governo interino chamam os cidadãos para se defenderem enquanto convidam as forças militares recém reconstituídas a se unirem à cruzada para derrotá-las.

Desmantelamento criminoso da democracia

O esvaziamento do Estado é consequência da tolerância que as elites políticas tiveram com o domínio territorial das quadrilhas após a intervenção humanitária de 2004 e o terremoto de 2010. Nos ciclos eleitorais posteriores, as quadrilhas capitalizaram sua dominação territorial. Não só tiveram um papel clientelista, mas também utilizaram a violência para favorecer seus patrocinadores políticos em seus respectivos distritos.

Entretanto, durante o governo de Jovenel Möise, do neoduvalierista Parti Haïtien Tèt Kale, a democracia terminaria de juntar-se com o convite às quadrilhas para participar do processo de autocratização. De forma encoberta, o governo fortaleceu secretamente as quadrilhas em detrimento da frágil força policial após o fim do mandato da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH).

As quadrilhas se tornaram assim as forças de choque do governo, que entre 2018 e 2022 causaram a morte de 947 pessoas, segundo a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH), muitas delas em subúrbios considerados como bastiões opositores à Möise.

As quadrilhas – especialmente o G-9 – se fortaleceram no marco da erosão democrática no país caribenho. O governo se beneficiou do ambiente de controle social e as quadrilhas se beneficiaram do acesso aos recursos do Estado. Entretanto, o surpreendente magnicídio de Möise abriu um novo cenário. A fraqueza do G-9 foi explorada por outras quadrilhas que competiam pelo controle territorial. Isto resultou na proliferação de novas quadrilhas que fizeram com que a democracia fosse rapidamente sequestrada pelo terror das quadrilhas. O alto número de sequestros, a tomada do terminal de Varreux e os ataques às delegacias de polícia criaram um ambiente que impossibilita a realização de eleições.

Autoridade e acordos de papel

Neste clima de incerteza, Ariel Henry assumiu como primeiro-ministro interino em junho de 2021. Desde então, sua autoridade tem sido nominal diante dos constantes ataques armados e da concorrência exitosa das quadrilhas que atualmente dominam cerca de 60% da capital. A autoridade do primeiro-ministro, por sua vez, foi contestada porque politicamente a oposição ressurgiu sob a figura do Acordo de Montana, que exige sua renúncia e eleições imediatas. A oposição até se agrupou em torno do rechaço à instalação de uma força internacional solicitada pelo primeiro-ministro em outubro passado.

Entretanto, o Acordo de Montana foi debilitado com a deserção de vários de seus membros após a melhor posição política do primeiro-ministro, graças ao Acordo de Musseau. Este acordo entre forças políticas nomeou um Alto Conselho Transitorio que apoiará o primeiro-ministro haitiano na organização das eleições adiadas desde 2021.

Entretanto, na situação atual, a iniciativa cai em saco furado, já que o país não conta atualmente com as condições mínimas de segurança para poder realizar eleições imparciais e pacíficas. Paradoxalmente, celebrar eleições nestes momentos poderia avivar ainda mais o conflito em um país onde sua instituição eleitoral é provisória e o apoio à democracia é o mais baixo do continente, segundo a última pesquisa do Latin America Public Opinion (LAPOP).

Mutação da violência e o tráfico de armas

A situação de violência no Haiti mantém uma lógica própria. Muitos analistas têm associado o panorama de segurança com o que acontece em vários conflitos em África. No Haiti, porém, a violência não se deve a conflitos entre etnias competindo pelo poder político. Pelo contrário, trata-se de grupos criminosos instrumentalizados por grupos empresariais e políticos para manter feudos onde exercem seu domínio territorial. O problema é que este caráter parece estar em mutação diante a maior autonomia das quadrilhas para atuar sem a anuência de seus antigos patrocinadores.

Esta perigosa transição criminosa está sendo alimentada pelo incremento do comércio de armas dos Estados Unidos e da República Dominicana. Segundo o último relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), a situação crítica do país tornou-o um mercado atrativo para o comércio ilícito de armas. A isso soma-se as fronteiras porosas que dificultam o trabalho das autoridades para deter o fluxo de armas para as quadrilhas, ampliando ainda mais a desvantagem numérica e qualitativa frente ao poder de fogo das quadrilhas.

Uma missão complicada

Em outubro de 2022, o primeiro-ministro haitiano pediu a mobilização de uma força internacional para restaurar a ordem pública em seu país. A petição segue sem aprovação devido às divisões no Conselho de Segurança da ONU e à resistência de países caribenhos à pressão dos Estados Unidos para que um país do Sul Global assuma a liderança nesta responsabilidade internacional.

Se finalmente aprovada, a missão para estabilizar o Haiti será mais difícil do que as passadas. Esta missão certamente terá como objetivo derrubar um governo autoritário, mas também não será semelhante à MINUSTAH, que se limitou a reduzir os homicídios e sequestros durante seu mandato. Aqui a tarefa seria mais complicada, trata-se de desarticular um sistema de governança criminosa, o que implicaria em efetivamente quebrar a aliança entre políticos, empresários e criminosos que mantém o poder político atado ao uso de quadrilhas como mecanismo de poder político, e deveriam implementar medidas para evitar que este e novos fenômenos de conluio afetem o funcionamento das instituições.

Sem um Estado limpo, não há democracia funcional. Isto nos deixa como alternativa um argumento impopular: a intervenção é necessária para que um futuro democrático eleições  as eleições não terminem de endossar as práticas autoritárias e criminosas que sequestraram o Estado e milhões de haitianos.

Autor

Pofesor de Relaciones Internacionales de la Pontificia Universidad Javeriana (Colombia). Magíster en Ciencia Política por la Universidad de Salamanca (España).

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