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Herança e pessimismo

Passam os caudilhos milagreiros, os militares no poder, as democracias (mais ou menos apócrifas), as ditaduras modernizadoras, mas o atraso continua a dominar a vida de sociedades que não conseguem encurtar as distâncias (de produtividade e bem-estar) que as separam dos países que costumamos chamar de “desenvolvidos”. Houve algumas exceções de países atrasados que deram o salto para o desenvolvimento no final do século 19 (no norte da Europa e Japão) e no final do século 20 (no leste da Ásia), mas na maior parte do mundo o atraso continua a ser uma maldição capaz de amargar a existência de boa parte da humanidade, apesar da passagem do tempo, das diferentes políticas econômicas, das boas intenções de um e outro governante, ou das ocasionais bonanças propiciadas pelo comércio de matérias-primas. Essa história está a ponto de se concluir? Quem pode afirmar que esse legado, como herança, não se prolongará pelas próximas gerações ou mesmo séculos?

Supondo que exista alguma força histórica destinada a conduzir os países para além do atraso (uma espécie de mão invisível mundial), seria preciso reconhecer que sua decolagem vem sendo na melhor das hipóteses lenta, se não errática, nos últimos séculos. Os estigmas persistem apesar do tempo e da mudança das formas: instituições de baixa qualidade, pobreza generalizada e alta segmentação social, além de atraso técnico e baixa competitividade. Nas sociedades avançadas, hoje mais do que no passado, acontece que pessoas nascidas em famílias pobres tenham alta probabilidade de continuar a sê-lo. E o mesmo vale para países inteiros. Por conta disso, o espaço para o otimismo quanto ao futuro não é muito amplo, digamos. O aforismo de Gramsci sobre o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade se tornou famoso. Devemos acrescentar que, nos “Cadernos do Cárcere” (uma obra desordenada, tumultuosa e exuberante de ideias), ele insistia na necessidade de proteção contra aqueles que prometem, entre múltiplas patranhas, a abundância iminente e soluções simples para todos os problemas existentes e que possam surgir. O otimismo pode ser uma forma de autoilusão (um sedativo para a razão) tão daninha quanto o pessimismo disfarçado em sabedoria paciente.

O atraso foi explicado de muitas formas –pela baixa produtividade, pelo espírito empreendedor escasso, pela lentidão tecnológica, pela conexão inadequada com o mercado internacional, pelo clima e pela localização geográfica dos países. E tudo isso certamente tem algum grau de verdade, em combinações variáveis a depender dos momentos e dos países em questão. Ainda assim, como se o cenário não fosse suficientemente sombrio, existem outras circunstâncias que tendem a amarrar os países “em vias de desenvolvimento” a um passado do qual não conseguem se emancipar plenamente, inclusive quando antenas parabólicas surgem nos telhados dos barracos marginais, ou shopping centers reluzentes revelam a presença de classes médias sedentas de símbolos de seu bem-estar. As vestes mudam mas continuam a encobrir organismos sociais deformados.

Os países que, em momentos distintos dos dois últimos séculos, conseguiram dar um salto à frente têm algo em comum: não passaram por períodos coloniais prolongados”

Por que, em meio a um atraso que se metamorfoseia ao longo de gerações, seus traços primários continuam inalterados? Registremos uma circunstância que poderia ser relevante. Os países que, em momentos distintos dos dois últimos séculos, conseguiram dar um salto à frente têm algo em comum: não passaram por períodos coloniais prolongados. Se isso é fato, como parece ser, por que uma experiência colonial longa travaria, mesmo séculos depois de ter sido superada, a saída do atraso, em alguns países? Uma resposta pode estar na fenda de desconfiança que a colônia deixa na sociedade e instituições. Ser colônia por um período prolongado implica a conformação de sociedades que não podem crer nas instituições que as dominam, como se fossem um ente externo a elas mesmas. As instituições, por conseguinte, não podem ser críveis aos olhos da sociedade e sobretudo aos olhos de seus setores mais pobres. Instituições opressivas que se reproduzem com o tempo, mesmo depois da colônia, deixando uma cultura arraigada de depredação impune contra os cidadãos que deveriam tutelar. Um componente entrópico instalado no seio da sociedade que não só não favorece mas frequentemente entorpece a ação coletiva, pela ineficácia derivada do controle social escasso.

A fenda entre sociedade e Estado criada nos séculos de colônia tende a persistir em longo prazo, mesmo que o país supere a condição de colônia. Uma fenda de mútua desconfiança. Esse sinal de origem forma uma corrente contrária que opera silenciosa e eficazmente ao longo dos séculos. E a consequência é que uma sociedade que, apesar de descontentamentos e conflitos, não se reconhece em suas instituições não só deixa de confiar em si mesma como tende a crer que o caminho da prosperidade pressupõe a apropriação institucional ilícita da riqueza criada socialmente. Os regimes e as formas políticas podem variar, mas o legado desagregador deixado por um passado colonial longo tende a se manter, apesar da mudança em suas formas. Uma corrente invisível mas eficaz que vê eficácia nas instituições como agente de desenvolvimento mas mantém quanto a elas uma desconfiança social persistente. Tendo isso em conta, quantas gerações ou séculos serão necessários para neutralizar essa corrente contrária a todo esforço (por mais bem intencionado ou acertado que possa ser) de emancipar uma sociedade do atraso? Afinal de contas, um caminho firme rumo ao desenvolvimento requer ação combinada entre a sociedade e as instituições; a desconexão supõe inconsistência e fragilidade incorporadas.

Pois bem, se o afirmado acima procede, qualquer projeto sólido de deixar para trás um longo passado de atraso requer eficiência e credibilidade das instituições públicas. Sem isso, toda tentativa se provará vã, mais cedo ou mais tarde. Mas existe outra corrente contrária, também secular, que vem da era colonial (e até de antes dela). Uma pesquisadora americana se refere a essa corrente como a falta de empatia social entre os diferentes estratos de uma mesma sociedade. Refiro-me a Judith Teichman, em seu “Social Forces and States. Poverty and Distributional Outcomes in South Korea, Chile and Mexico” (2012), onde ela compara Coreia do Sul, Chile e México e chega à conclusão de que, nos dois últimos, a fragmentação social deixada pela colonização consolidou uma falta de empatia entre diferentes grupos sociais, legado que impediu e continua impedindo que os setores sociais mais pobres façam valer seus interesses diante das decisões das elites governantes.

Em outros termos, os pobres não recebem apoio da classe média a fim de levar adiante suas demandas. A existência que existia no passado entre “criollos”, “mestizos” e indígenas funciona secularmente como um fator de desconexão social e, enfim, como obstáculo ao estabelecimento de mercados nacionais capazes de alimentar uma atividade econômica sólida em longo prazo. Já a Coreia do Sul, cuja condição de colônia do Japão durou “apenas” meio século, preservou nexos fortes entre estratos sociais distintos, que conduziram até mesmo governos fortemente conservadores como o de Park Chung Hee a tomar decisões orientadas a evitar segmentações sociais persistentes e capazes de impedir o desenvolvimento de um mercado nacional integrado e dinâmico, por exemplo no setor agrário. Não é absurdo dizer que, considerando a situação com base em suas consequências de longo prazo, diversos governos conservadores do leste da Ásia foram mais progressistas que muitos governos “revolucionários” da América Latina.

Concluamos. Se a fenda que separa o Estado e a sociedade é duradoura; se não parecem existir remédios rápidos para ela; e se a escassa empatia da classe média e da classe alta pelos pobres rurais e urbanos está destinada a continuar sendo um fator que debilita a capacidade social de pressão sobre as instituições suas políticas, estamos em uma situação na qual as políticas econômicas, por mais acertadas que possam ser, estão destinadas a desempenhar papel menor do que a teoria econômica lhes designa. As sociedades atrasadas e com um histórico colonial longo herdam fatores entrópicos que não impedem o progresso mas impedem que o atraso seja deixado para trás. E é exatamente isso que dificulta contemplar o futuro com o otimismo desejável.

Autor

Professor e pesquisador do CIDE (México). Seus últimos livros são: "La salida del atraso" (2020) e "Un eterno comienzo (2017)."

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