Há algumas semanas, o Presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) anunciou que a vacina mexicana contra a COVID-19 já tem um nome, será chamada “Pátria”. Soa bem. Contudo, quando questionado sobre o progresso na pesquisa, seu financiamento, produção e distribuição, ele apenas ofereceu imprecisões. O anúncio era o nome de uma vacina que não existe.
Discrepância entre o discurso e a realidade
Bem-vindo ao México de AMLO, onde a discrepância entre o discurso e a realidade é a norma. Os exemplos sobram. Janeiro foi o pior mês desde o início da pandemia com 32.729 mortes por COVID-19, mas no final deste mês o governo anunciou que o vírus estava sob controle. O ano de 2020 se projeta como o mais violento da história do México com 40.863 homicídios dolosos, mas AMLO afirma que o seu governo conseguiu conter a violência. O PIB do México caiu 8,5% no ano passado, o maior desde a Grande Depressão de 1929, mas o governo estima que a crise econômica será ultrapassada este ano. E como se isso não fosse suficiente, o presidente afirma que não há mais corrupção no seu governo, mas circulam vídeos do seu irmão recebendo bolsas de dinheiro de políticos próximos ao seu partido, o Movimiento de Regeneración Nacional (MORENA).
A discrepância entre o discurso oficial e a realidade é de origem e remonta à alcunha que AMLO deu ao seu governo quando tomou posse: a “quarta transformação” do país. As três primeiras teriam sido a Guerra da Independência (1810-1821), a Guerra da Reforma (1858-1861) e a Revolução Mexicana (1910-1920). Isto é uma manipulação grosseira da história do país, mas reflete o quão longe o discurso do governo está da realidade atual do México.
Com efeito, o governo de AMLO não se assume pelo que é: um dos três poderes públicos que constituem o Estado mexicano, nem mais nem menos. Pelo contrário, imagina a si mesmo (pelo menos discursivamente) como uma reedição das convulsões sangrentas que marcaram o país e deixaram um rastro de mortos.
Os nomes importam. Neste caso, a “quarta transformação” revela dois fatos graves. O primeiro, e já mencionado, é a dissonância entre o discurso público e a realidade. O segundo é a vontade antidemocrática de AMLO, que aparentemente aspira a uma vitória total e esmagadora sobre os seus adversários. Nesta “transformação”, como nas outras três, os partidos da oposição não seriam representantes legítimos da diversidade política do país, mas um inimigo histórico a ser derrotado.
A democracia mexicana
A democracia que nós mexicanos construímos no final do século XX prometia o contrário. De fato, um dos principais objetivos da transição democrática (1977-1996) era incorporar na política institucional partidos e atores que não partilhavam o credo do hegemônico Partido Revolucionário Institucional (PRI), tais como o Partido Comunista. Não esqueçamos de onde viemos: o México durante grande parte do século passado foi um regime autoritário de partido “quase único” com uma “presidência imperial”, como o historiador Enrique Krauze lhe chamou, no seu ápice.
Um elemento chave no desmantelamento do regime autoritário do PRI foi a criação de um quadro institucional que impedisse a concentração de poderes formais e informais no Executivo. Se pretendia evitar que um novo presidente tentasse transformar o país de cima para baixo a cada seis anos.
É por isso que López Obrador está tão pouco à vontade com as instituições democráticas do país como o Instituto Nacional Eleitoral (INE), e por extensão com os seus conselheiros. Porque uma coisa é chegar ao poder através das urnas e outra é governar no meio de uma confusão de equilíbrios e contrapesos institucionais. Um incômodo, a democracia, quando se tem de obedecer às suas regras! E o governo de AMLO não é uma exceção em termos da sua difícil adaptação a um regime totalmente democrático.
Os populismos latino-americanos de esquerda e direita sempre consideram a democracia como um obstáculo. E sim, é. Está lá para moderar ambições radicais, abrandar a promulgação de leis, estabelecer um limite temporal e material aos poderosos, e impedir a tomada absoluta do Estado por um único grupo. Para o dizer claramente: a democracia existe para tornar difícil a vida do político com pretensões autocráticas. E a democracia mexicana está conseguindo isto, até certo ponto.
A transformação prometida por AMLO é, neste momento, apenas discursiva. A verdade é que não é de todo fácil. Este é um governo enxuto cujo as principais promessas de campanha – menos violência e mais crescimento econômico – estão agora fora do seu alcance material. Talvez seja por isso que AMLO está hoje, mais do que nunca, se agarrado desesperadamente a um patriotismo cheio de esperança e cheio de simbolismo, mas sem substância. Muito barulho por nada.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto por Eneas em Foter.com / CC BY
Autor
Cientista político e economista. Doutor pela Universidade de Toronto. Editor sênior da Global Brief Magazine. Especialista em Desenho de Pesquisa Social na RIWI Corp. (Real-Time Interactive World-Wide Intelligence).