Com o início das operações militares russas na Ucrânia, um número significativo de jornalistas de diferentes partes do mundo que trabalham para a mídia russa, como RT (Russia Today) e Sputnik renunciaram a seus postos, como os correspondentes ingleses Shadia Edwards-Dashti e Jonny Tickle e a editora-chefe russa e ativista Maria Boronova. De fato, diferente da maioria dos jornalistas de língua espanhola destes meios de comunicação que se mantiveram em suas posições aceitando a linha editorial do governo russo, Inna Afinogenova, uma das youtuber-periodistas mais populares em espanhol, renunciou à RT devido a seu desacordo com a guerra e o papel propagandístico do meio de comunicação no qual trabalhava.
Os efeitos colaterais dos conflitos na imprensa russa não são novos. De fato, em 2014, a apresentadora norte-americana da RT, Liz Wahl, demitiu-se em plena transmissão por razões similares. Entretanto, a postura desses jornalistas contradiz a afirmação de Vladimir Putin de que a RT é “uma emissora totalmente independente, apesar de ser financiada pelo Estado”.
A criação destes tipos de projetos de comunicação não é algo novo no mundo. Particularmente, mas não exclusivamente, os Estados não democráticos têm se caracterizado por empregar essas agências política e militarmente com o objetivo de influenciar audiências estrangeiras, amparados sob slogans de suposta independência editorial.
Se não está comigo, está contra mim.
A credibilidade jornalística de Inna Afinogenova sempre foi questionada pelas mídias tradicionais da região por trabalhar para a RT. Desde 2017, a jornalista russa já foi criticada pela diretora da revista colombiana Semana, Vicky Davila, o jornalista do El Financiero de México, Fernando García, e até mesmo pelo editor do jornal espanhol El País, David Alandete, que afirmavam que o conteúdo do meio de comunicação, ao ser financiado pelo Estado russo, favorecia seus aliados na região como Venezuela e todos os líderes ou partidos políticos catalogados de esquerda.
Ademais, em repetidas ocasiões, as críticas sugeriam, sem suficiente evidência, que as publicações da mídia russa eram inorgânicas e que eram disseminadas e viralizadas por um exército de contas falsas. Portanto, seu trabalho não era jornalístico, mas um produto propagandista tendencioso e altamente politizado.
No entanto, a jornalista russa sustentou consistentemente que os conteúdos que produzia não eram afetados pelos objetivos políticos do governo russo. E, de fato, sugeriu várias vezes que o desconforto que provoca nestes meios de comunicação de língua espanhola se devia à baixa qualidade do jornalismo desses meios, que evidentemente servia aos interesses dos partidos políticos tradicionais latino-americanos próximos aos interesses dos Estados Unidos.
Neste sentido, a seção de comentários de suas publicações foi um espaço fervoroso de interações no qual congregavam majoritariamente seus crentes, que a agradeceram por ser um farol de luz em meio à limitada análise jornalística dos fenômenos políticos e sociais latino-americanos.
Com a escalada do conflito ucraniano, as análises da jornalista russa foram se distanciando da linha editorial do governo russo e, portanto, da RT, já que era evidente sua discordância tanto com as ações da OTAN e seus aliados, bem como as do Estado russo.
Mais tarde, seus conteúdos foram censurados e removidos da rede social Youtube, como grande parte do conteúdo pró-russo. Mas, ao mesmo tempo, a jornalista desapareceu repentinamente do canal russo. Em sua reaparição, meses depois através de um vídeo em seu próprio canal Youtube, a jornalista explicou que havia se ausentado, entre outras coisas, devido a sua demissão da RT por diferenças editoriais. Isto fez com que suas contas perdessem seguidores.
Viés “independente”
O exemplo da jornalista russa Inna Afinogenova evidencia a alta polarização que existe entre os meios de comunicação financiados por Estados não democráticos como RT ou HispanTV do Irã. Trata-se de meios que empregam slogans como “questionar mais” ou “mostrar um ponto de vista alternativo” para ofertar um tipo de jornalismo próximo da “verdade”. Entretanto, trata-se de armas de informação que polarizam e favorecem interesses particulares.
Mas este fenômeno não é exclusivo destes tipos de regimes. Os meios de comunicação ocidentais de países democráticos também dizem ser “independente” e, no final, seu alcance e profundidade são limitados por fatores econômicos privados ou políticos. Portanto, informar a sociedade não é seu único objetivo.
Neste contexto, se assumirmos que a decisão da jornalista russa de abandonar a RT não é uma estratégia midiática para aumentar o número de seguidores nas redes sociais, sua demissão seria uma lição de integridade jornalística. Sobretudo em um momento em que a era digital, a monetização e a popularidade predominam sobre a coerência informativa.
Finalmente, o que o caso da jornalista russa deixa em evidência é a brecha que existe entre a linha editorial dos jornalistas que trabalham para os grandes meios e os meios em si. Portanto, se o que buscamos é uma independência autêntica, parece claro que será mais fácil encontrá-la entre as pessoas que se dedicam ao jornalismo do que entre os meios de comunicação.
Autor
Professor adjunto da Universidad de la Salle (Bogotá). Mestre em Estudos Internacionais pela Universidad de los Andes. Membro do Programa de Treinamento 360/Digital Sherlocks Training Programme (DFRLab) para combater a desinformação.