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Covid-19: Migrações na América Latina

A confirmação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil e a propagação do coronavírus na região obrigaram os governos da América Latina a criar diversas respostas a fim de tentar conter o avanço da doença. Nesse contexto, os migrantes e suas famílias estão entre os principais afetados.

No momento, a América Latina está na fase de transmissão comunitária da Covid-19, com consequências dramáticas como as que estão sendo observadas no Equador depois do colapso do sistema de saúde, com a maior proporção de contágios e de mortes entre os países da América do Sul. Em um cenário como esse, não se pode ignorar o impacto da pandemia sobre os migrantes e suas famílias, no marco da mobilidade humana.

Apesar da existência de diversas organizações e processos de integração regional, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Mercosul ou a Comunidade Andina, não houve uma resposta conjunta à chegada da Covid-19 à América Latina. Cada país reagiu de maneira autônoma, declarando estados de emergência de acordo com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e impondo medidas como o distanciamento social, a restrição de ingresso de visitantes estrangeiros e o fechamento de fronteiras. Com o aumento do número de contágios e mortes, as respostas endureceram a ponto de a maior parte dos países da região ter decretado a suspensão de atividades não essenciais, o fechamento de fronteiras e a limitação da circulação de pessoas, em alguns casos em todo o território nacional.

Todas essas medidas impediram o retorno para casa e geraram desabrigo para milhões de pessoas, e exercem impactos múltiplos sobre o dia a dia das populações locais. Mesmo assim, as consequências assumem proporções diferentes no caso dos migrantes e suas famílias.

A América Latina é essencialmente um território de emigração, e as consequências políticas e socioeconômicas da pandemia afetam a vida e os direitos dos latino-americanos que vivem fora da região. Ao mesmo tempo, a crise econômica gerada pelo Covid-19 terá impacto sobre os fluxos de remessa de dinheiro e o nível de renda dos familiares das pessoas emigradas. A América Latina também é uma região de trânsito, imigração, refúgio e de pessoas apátridas, e é para essas populações que as medidas tomadas pelos governos latino-americanos vêm tendo consequências graves.

O fechamento repentino das fronteiras nacionais, assim como a militarização e o reforço dos controles migratórios, não detiveram completamente a migração, e em lugar disso forçaram os migrantes a buscar rotas alternativas”

Um dos primeiros efeitos é que o fechamento repentino das fronteiras nacionais, assim como a militarização e o reforço dos controles migratórios, não detiveram completamente a migração, e em lugar disso forçaram os migrantes a buscar rotas alternativas e irregulares de ingresso. Isso aumenta a vulnerabilidade deles e agrava os perigos a que se expõem, por exemplo de sequestros e abusos sexuais. Um caso a citar é o da Costa Rica, que criou uma base militar em sua fronteira com a Nicarágua para vigiar e impedir o ingresso em seu território de nicaraguenses que buscam entrar no país de maneira irregular. Mas ainda assim esses deslocamentos continuam. Além disso, a população centro-americana em trânsito para os Estados Unidos está em situação de extrema vulnerabilidade. Os migrantes estão concentrados em locais superlotados, sem assistência de saúde e com elevado risco de contágio, em estações de controle de migração ou centros de detenção de migrantes, nos quais ficam constantemente expostos, além disso, a diversas formas de extorsão e violência, por parte do crime organizado ou das autoridades locais.

Em um contexto marcado por grande desigualdade e exclusão social, a maior parte dos migrantes tampouco pode “ficar em casa”, porque isso significaria não ter renda, e privar suas famílias de renda. Contudo, a paralisação das atividades designadas como não essenciais foi mais um duro golpe para uma coletividade que trabalha principalmente no setor informal e que se viu privada de sua renda de subsistência. Sem renda e, muitas vezes, sem direito a assistência de saúde, as pessoas em mobilidade se expõem a níveis mais elevados de pobreza, precariedade e xenofobia.

Por não poderem recorrer aos serviços médicos locais, não contarem com redes de apoio e encontrarem problemas no acesso à informação, ou por estarem privados da assistência social destinada aos cidadãos locais, os migrantes, especialmente os não documentados, estão desprotegidos e, quando não podem pagar seus aluguéis, ficam sujeitos a despejos indiscriminados. Foi esse o caso, por exemplo, de milhares de venezuelanos que estão vivendo na rua em países como Colômbia e Peru, porque não puderam mas pagar por suas acomodações nas pensões em que moravam. Como se isso não bastasse, em cidades como Bogotá as autoridades estão em disputa quanto à gestão dos recursos de emergência, e surgiram declarações públicas de teor xenófobo que estimularam ações contra os migrantes.

Os despejos indiscriminados de migrantes e a falta de meios de subsistência causaram um fenômeno não menos complexo: o retorno maciço de cidadãos venezuelanos ao seu país de origem. As dificuldades e desafios desse processo surgem por o retorno estar acontecendo em um momento de grande vulnerabilidade, sem assistência de saúde e rumo a um país que está vivendo a pior crise humanitária da região, agravada pelas sanções econômicas impostas acima de tudo pelos Estados Unidos.

A situação de emergência pela Covid-19 determinou também o fechamento indiscriminado de fronteiras, sem protocolos adequados de assistência aos migrantes que estão em processo de retorno. O governo da Bolívia, por exemplo, mantém mais de 200 cidadãos, entre os quais mulheres grávidas, idosos e crianças, em um acampamento militar na cidade fronteiriça de Pisiga. Trata-se de famílias de trabalhadores sazonais bolivianos provenientes do Chile, que terminaram sem trabalho e e recursos para permanecer naquele país. A Defensoria Pública boliviana e diversas organizações de defesa dos direitos humanos denunciaram as condições precárias dessa população, que vem recebendo escassa atenção da parte das autoridades, e enfrenta problemas de discriminação, dificuldades de nutrição, higiene e acesso a recursos básicos.

A pandemia e as diversas medidas adotadas para enfrentá-la estão afetando seriamente a saúde física e mental dos migrantes, além de terem causado o crescimento de múltiplas formas de discriminação, estigmatização e xenofobia. Paralelamente, estão causando mortes, expulsões e deportações de migrantes, assim como a criação de projetos de lei que desrespeitam os direitos humanos. É o caso de um projeto de lei que dispõe a deportação dos estrangeiros residentes no Peru e afetados pela emergência de saúde. E os efeitos sofridos pela coletividade dos migrantes mal começaram a se manifestar. Os migrantes e suas famílias também serão uma das categorias mais afetadas pela crise econômica, pela crescente pobreza e pela perda de empregos que as sociedades latino-americanos estão experimentando por conta dessa epidemia mundial.

Os desafios gerados pela Covid-19 são enormes, mas esta não é a primeira e nem será a última emergência de saúde que a América Latina terá de enfrentar.  Por isso, os países da região deveriam extrair lições importantes da situação e compreender que qualquer medida contra as pandemias e em favor da saúde pública implica na necessidade de proteger a todos, sem distinção de passaporte ou situação migratória. Todas as respostas devem integrar os migrantes e os refugiados nas políticas estatais e de assistência social, reconhecer suas especificidades, proteger seus direitos e combater a xenofobia, a violência e qualquer tipo de discriminação que coloque em risco a dignidade humana. 

Foto de M1key.me em Foter.com / CC BY

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Cientista política. Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UNIRIO. Doutora em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madri.

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