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Mulheres negras, desigualdades e racismo oculto

As mulheres negras apresentam os menores índices de escolaridade e, como desdobramento, as piores posições no mercado de trabalho quando comparadas às mulheres brancas.

Relatórios da Organização das Nações Unidas apontam que a raça determina a composição da base das novas formas de pobreza e miserabilidade mundial. Por consequência, mulheres negras ocupam posições ainda mais drásticas de vulnerabilidade extrema e são as mais impactadas quando tratamos da privatização de serviços públicos.

Segundo OXFAM, a América Latina e o Caribe é a região mais desigual do mundo e o lugar onde os ricos representam a maior parte da riqueza total, depois do Oriente Médio e do Norte da África, e onde os 50% mais pobres têm tão pouca riqueza quanto a África Subsaariana. Em um grande sinal das vulnerabilidades impostas pela raça, as pessoas e famílias negras aparecem entre aqueles que são expulsos do mercado de trabalho ou, aqueles que, uma vez empregados, são explorados, sub-remunerados, com frequentes abusos e violações de direitos. De acordo com o Centro Demográfico da América Latina e do Caribe (CELADE), na América Latina, a população afrodescendente é estimada em 153,7 milhões de pessoas, o que representa 23,7% de sua população total”. 

Dentro deste grupo, as mulheres negras  experimentam múltiplas condições de exclusão, desigualdade e déficit de cidadania. Apesar das conquistas, persistem a pobreza e lacunas significativas na renda que as penalizam. Nos Estados Unidos, por exemplo, “o patrimônio de uma família negra comum equivale a apenas 15,8% ao de uma família branca comum”, enquanto, no Brasil, “em média, o rendimento dos brancos é mais de 70% superior à renda de pessoas negras”, revela o relatório anual da Oxfam Internacional.

Agregando o recorte de gênero, no Brasil, de acordo com o monitoramento e avaliação divulgados pelo Ministério da Igualdade Racial, mulheres negras são 38,5% das pessoas constantes no Cadastro Único (CadÚnico). Do mesmo modo, são as que apresentam os menores índices de escolaridade e, como desdobramento, as piores posições no mercado de trabalho quando comparadas às mulheres brancas.

No país, negros, de forma geral, são presença majoritária no trabalho informal, compreendido pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) como “empregados no setor privado sem carteira de trabalho assinada; empregado doméstico sem carteira de trabalho assinada; empregador sem registro no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ); trabalhador por conta própria sem registro no CNPJ; e trabalhador familiar auxiliar”. Mas, se considerarmos, entre os trabalhadores informais, apenas os 5,8 milhões de trabalhadores domésticos, mais de 91,4% são mulheres, sendo 67% são mulheres negras.

O impacto da privatização

Neste cenário, o relatório da Oxfam sobre desigualdade global, apresentado no Fórum Econômico Mundial em Davos, agrega que o futuro pode ser ainda mais sombrio: “serão necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos ter o nosso primeiro trilionário em 10 anos”, diz.

O mundo ocidental vive uma nova era de acirramento de desigualdades e injustiças sociais, com aumento drástico de divisão social, fortalecimento do poder monopolista e empoderamento de grandes empresas, indicados pelo relatório que assegura: a privatização dos serviços públicos é prática relevante para este processo.

No primeiro plano, a privatização traria inequívoca lucratividade de grandes empresas. E, adiante, potencializaria a exclusão e o empobrecimento, dos quais os mais prejudicados são os grupos definidos por gênero, raça e etnia, sobretudo, mulheres racializadas. Em contexto da dinâmica geopolítica, com relações estabelecidas nos países do Norte Global, as imigrantes. Para o caso interno de países, como o Brasil, formados sob herança da escravização e colonização, as negras, sobretudo.

Não foi por outra razão que a representação da Oxfam Brasil, ao compor a coalisão pela Reforma Tributária 3S e participar de audiência pública realizada pelo Grupo de Trabalho sobre a Regulamentação da Reforma Tributária, decretou: “a fome no Brasil tem cara de mulher preta”, corroborando o relatório divulgado, para o qual todas as desigualdades verificadas em nível global são acirradas quando atravessadas por condição de gênero, raça,  origem (para os casos de imigrantes); enfim, por marcadores sociais de diferença que fundamentam práticas de discriminação.

A privatização dos serviços públicos e a vulnerabilização de mulheres negras

Os incentivos para que os Estados nacionais invistam em práticas de privatizações de empresas e serviços públicos são estratégicos para este modelo global de produção de poder através do fortalecimento de grandes empresas privadas.

Tais privatizações podem se apresentar pela venda de empresas ou passagem de fornecimento de serviços para o setor privado, como luz e água. Ou, ainda, pela precarização de serviços básicos, como educação, saúde e segurança, de forma a favorecer a concorrência com ofertantes privados do mesmo serviço.

A consequência direta é a fragilização das relações de trabalho, sobretudo, quando associada às políticas de flexibilização das leis trabalhistas; em uma associação que, frequentemente, empurra grande parte da força laboral para a condição de trabalho terceirizado e precarizado.

Em ambos os modelos, trabalhadores pauperizados e mal remunerados são levados a atuarem na condição de consumidores de segunda categoria em um sistema de ofertas voltado para a rentabilidade e enriquecimento de empresas. Sendo clientes e consumidores de segunda categoria, veem sua condição de cidadania reduzida; e, com ela, o acesso à direitos fundamentais, outrora garantidos, com segurança, pelos Estados nacionais. 

Se as privatizações dos serviços públicos atingem toda a população que se encontra na base das relações sociais, com escasso estoque de capitais fundamentais para sua automanutenção, tais como capital educacional, político e econômico, certamente, agudizam a situação daquelas que integram o conjunto mais vulnerável desta essa base desprovida: as mulheres negras.

Mulheres negras, frequentemente, são levadas a verem o Estado e a acesso aos serviços públicos como uma possibilidade real de garantia de qualidade mínima de vida, para si e sua família. No Brasil, de acordo com Pesquisa Nacional de Saúde, mulheres negras foram 60,9% do público que utilizou serviço do Serviço Único de Saúde (SUS). Do mesmo modo, educação, segurança, serviço de justiça e demais serviços públicos são acessados em grande parte por pessoas e famílias negras, frequentemente, chefiadas por mulheres negras.

Em um cenário global, processos de privatização as atingem diretamente: as vulnerabilizam fazendo com que integrem o trabalho informal, sobretudo o de limpeza; as destituem de sua condição básica de cidadania, com privação de direitos; e, as pauperizam, dificultando o acesso à serviços fundamentais.

Por esta razão, tanto quanto uma peça na engrenagem da produção de assimetrias econômicas, as privatizações devem ser entendidas como sutis e potenciais mecanismos a ocultar a face de um racismo que se reproduz, livremente, organizando o mundo e mantendo mulheres negras em estrutural condição de vulnerabilidade.

Autor

Socióloga. Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Coord. do Laboratório de Estudos e Inv. sobre Políticas Públicas e Desigualdades Sociais. Coord. da Comissão de Relações Étnico-Raciais da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS).

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