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Nem toda interrupção presidencial é um golpe de Estado

Há termos que simultaneamente carregam uma enorme carga emocional, juntamente com uma grande capacidade explicativa dos acontecimentos. É verdade que tanto seu uso como seu significado variam com o tempo, mas um deles mantém o seu caráter apaixonado. Provavelmente isso se deve pela complexidade dos eventos que definem a sua grande intensidade emotiva e à necessidade de estabelecer um marco interpretativo que possibilite a existência de opções claramente estabelecidas para reivindicar apoio ou aquiescência social. Por outro lado, são termos que configuram uma liturgia que parece fora de lugar em uma sociedade supostamente madura, uma teatralização da dissidência, do confronto, que, no entanto, traz consigo a artimanha de seu caráter polissêmico. Não se trata tanto da quantidade mas sim da intensidade com que uma expressão, como a de “golpe de Estado”, pode irromper na disputa e tornar-se acerbo ao definir o marco de uma discussão política.  

Un enunciado seco, de extrema dureza, repleto de dramáticos significados ancestrales que, sin embargo, en el fragor de la liza queda reducido al sinsentido de lo manido se vacía de su poder de denuncia para convertirse en una soflama más. Quando tal expressão é utilizada para tipificar uma dada situação, não tenho a certeza se estamos conscientes dos distintos aspectos cuja sequência é numerosa e impossível de abarcar aqui: desde a sua origem na ciência política moderna, o 18 de Brumário, até à elaboração por Curzio Malaparte de seu manual escrito em 1930.

Na Espanha existe uma longa tradição que também se estende ao âmbito da batalha semântica. O golpe de Estado de julho de 1936 foi denominado, por parte daqueles que o perpetraram, de levantamento para suavizar o severo simbolismo que esconde o termo. Em fevereiro de 1981, houve um golpe de Estado que fracassou. Paralelamente, esta categorização foi adjetivada por qualificativos que falavam do seu  reciedumbre (golpe suave) ou das forças que o instigavam (desde o golpe civil-militar até ao autogolpe). Por conseguinte, a questão é antiga e familiar, assim como complicada. Trago esta circunstância à tona por ter voltado a ter atualidade nos dois últimos meses na política latino-americana. Brasil e Peru são dois exemplos disso. 

Durante os últimos três quinquênios vêm se falando, da mesma forma, de golpes de Estado nas Honduras e no Paraguai. Para estes dois países, aos quais depois se juntou o Brasil, a saída presidencial foi imediatamente rotulada como tal pelos apoiantes dos Presidentes Manuel Zelaya e Fernando Lugo, e da Presidente Dilma Rousseff. Enquanto Zelaya foi afastado pela força da sua residência e transportado em um avião para a Costa Rica, Lugo e Rousseff deixaram o poder sob por seu próprio pé após julgamentos políticos. Uma forma inequívoca de golpe de Estado de militância política, mas intelectualmente inadequada, que levou à abertura de outras vias conceituais de conteúdo menos dramático, tais como a “interrupção presidencial”.

Mais recentemente, em 2019, Evo Morales foi convidado a renunciar ao poder após uma confusa jornada eleitoral e em um cenário de muita polarização, em grande medida, porque Morales ignorou o resultado de uma consulta popular desfavorável à sua reeleição. No Brasil, no final de 2022, o termo foi novamente utilizado para descrever primeiro a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, dada uma alegada fraude para a qual não foram apresentadas quaisquer evidências, e pouco depois para definir as ações vergonhosas e criminosas dos seus seguidores quando tomaram violentamente no último mês de janeiro a sede dos três poderes do Estado. Da mesma dupla forma, os detratores e simpatizantes de Pedro Castillo utilizaram-no no Peru para denominar sua tentativa de dissolver o Congresso e depois para qualificar sua detenção.

O cenário conduz assim a uma utilização que, para além da sua conceitualização político-constitucional, adentra, mais uma vez, no âmbito do relato. Definir o que aconteceu com uma locução sonora cheia de conotações implica posicionar-se à frente do adversário; implica estar na posse de uma verdade legitimadora do que está acontecendo, mas distanciar-se completamente das regras do jogo e de qualquer mecanismo institucionalizado.

Por tudo isso, proponho uma definição simplificada para este evento altamente significativo. Mas antes gostaria de recordar que a política se refere à gestão do poder na esfera pública e que isto envolve a gestão do conflito que existe entre as pessoas. A evolução no tempo traz consigo a aceitação generalizada de certos princípios como o da legitimidade legal e racional, e o explícito acatamento de que deve haver um monopólio de força que esteja submetida à lei. Assim, um golpe de Estado implica a ruptura de um certo ordenamento institucional articulado, de acordo com o sentido do Estado de direito, por meio do uso da força e da torção da vontade de quem até então detenha o poder. A força foi utilizada nas Honduras, mas não no Paraguai, Brasil ou Peru. A interrupção do mandato presidencial, contudo, ocorreu em todos os casos, algo que tem a ver com processos mais complexos que requerem interpretações e explicações mais elaboradas e menos simplistas, embora o golpe de Estado continue a ser o eixo narrativo mais atrativo.

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Profesor Emérito de la Universidad de Salamanca y de la UPB (Medellín). Últimos libros publicados (2020): “El oficio de político” (2ª ed., Tecnos, Madrid) y coordinado con Mercedes García Montero y Asbel Bohigues (2024): “Elecciones en América Latina: de pandemia y de derrotas (2020-2023)”, (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid)

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