É difícil conceber a democracia à margem de uma ordem republicana, entendida como uma construção coletiva com um fundamento jurídico e moral da esfera pública. Em outras palavras, não há República sem a construção deliberada de uma ordem política baseada na igualdade perante a lei, na justiça social e no envolvimento cívico. No entanto, a lei, a justiça e a virtude cívica parecem ser antinomias nas frágeis democracias da América Latina.
Embora o republicanismo clássico admita os riscos da transição da virtude para os interesses da República, as democratizações latino-americanas têm sido decisivamente afetadas por deformações estruturais (regras formais e informais) e padrões culturais de comportamento coletivo que laceram o cimento moral do interesse público.
Assim, o défice na virtude cívica e a predominância dos interesses privados sobre o interesse público parecem ter pervertido os fundamentos da ordem republicana coletiva na América Latina. Em primeira instância, a corrupção poderia ser definida como um ato de transgressão de uma norma orientada por interesses privados em troca de uma recompensa. No entanto, essa transgressão é frequentemente um fenômeno mais complexo que encontramos tanto no setor público como no privado.
Segundo o especialista Malem Seña, os atos de corrupção política são aqueles que constituem “uma violação ativa ou passiva de um dever posicional ou o não desempenho de uma função de natureza política a fim de obter um benefício extra posicional, qualquer que seja a sua natureza”.
Esses padrões normativos são sempre condicionados pelo contexto histórico e sociocultural. Tal relatividade da norma implica que uma conduta considerada corrupta numa sociedade não é considerada corrupta noutra. De fato, certas transgressões, tanto no setor público como no privado, podem tornar-se regras informais que equilibram e até otimizam certas transações entre ambos os setores, sendo positivamente valorizadas pela cultura social.
A corrupção é um fenômeno multidimensional que atravessa toda a sociedade, afetando tanto o funcionário público como o cidadão, e por isso envolve tanto o Estado como a sociedade civil. Um Estado fraco ou com capacidade limitada de gestão pública e democracias deficientes dificilmente faram prevalecer o interesse público sobre o egoísmo exacerbado do mercado.
O Estado na América Latina tem oscilado entre os excessos regulamentares dos governos nacionalistas populares e a extrema flexibilidade do liberalismo econômico impulsionado pela globalização capitalista. Em ambos os extremos, a profunda vocação autocrática de certos líderes tem sido visível, assim como um efeito estrutural que definirei como a estatização ou privatização do setor público. Esse é o maior incentivo para que a corrupção política floresça.
Tanto a estatização como a privatização da esfera pública baseiam-se no enfraquecimento da distinção público-privada e na perversão de uma ética da esfera pública. Nos países da América Latina, os ciclos históricos de episódios autoritários não têm sido excepção, e as democratizações recentes, apesar dos seus processos eleitorais recorrentes, não limitaram a emergência de lideranças com vocação autocrática.
As transições dos finais dos anos 70 e 80 marcaram a transição de sociedades com uma forte matriz centrada no Estado, típica de regimes burocrático-autoritários, para uma projeção econômica neoliberal, enraizada no Consenso de Washington, cuja premissa era a redução do aparelho de Estado e a liberalização econômica e o monopólio de mercado.
Assim, as oscilações políticas da região têm sido entre o Estado e o mercado. Os governos progressistas da “virada à esquerda”, com a sua vocação populista, tentaram travar os efeitos diferenciadores e excludentes do mercado, argumentando que este fortaleceu poderosos grupos econômicos e elites regionais. Mas na maioria dos casos, quando tentaram reforçar o aparelho de Estado a fim de alargar os efeitos redistributivos das suas políticas públicas para os setores populares, confundiram o interesse público (da nação) com os seus interesses político-eleitorais.
A estatização da esfera pública implicou assim uma politização dos direitos sociais e uma crescente polarização social. Não menos importante foi o desmantelamento dos mecanismos liberais de transparência e controle governamental, responsabilidade e respeito pelos direitos civis e políticos da oposição.
Esta dinâmica de autocratização tem sido o terreno fértil para a corrupção e uma nova elite econômica emergente, cujo capital se explica pela lealdade ao projeto populista e pela facilidade com que grandes montantes de fundos públicos podem ser depositados em contas familiares privadas. Na recente experiência latino-americana, as tentativas progressivas de fortalecer o Estado não conduziram a uma revalorização do interesse público e a uma nova ética que minimize os interesses privados fora da lei e projete uma noção de justiça social.
Por outro lado, os governos da direita neoliberal promoveram a privatização do Estado, ou seja, a sua captação preferencial para interesses empresariais privados e elites econômicas locais e regionais ligadas aos fluxos globais de capital. Dado o aumento das privatizações, o enfraquecimento do Estado tem um acesso limitado aos serviços públicos para grandes setores da população. Essa privatização do Estado subverte os mecanismos de representação popular e os órgãos de mediação onde a participação política é cristalizada, gerando uma desconexão entre as exigências dos cidadãos e as políticas governamentais.
A exclusão acentua o sentimento de abandono e mina os fundamentos cívicos da participação popular. Diante dessa precariedade da vida cotidiana, é difícil imaginar a construção racional de uma ordem coletiva e menos ainda o cultivo das virtudes cívicas. A lei e o Estado de direito, como normas universais, perdem o seu significado, e com ela, a noção mais elementar de justiça social.
Definir os fundamentos da República implica, portanto, criar condições para o desenvolvimento de um quadro jurídico que garanta a preeminência regulamentar da lei como estímulo à noção de projeto partilhado, regido pelos princípios da liberdade, da justiça social e do compromisso cívico. A República deve ser um projeto de uma nação inclusiva, sem mecanismos opressivos ou de exclusão; sem monopólios ou revanchismo.
Autor
Professor e pesquisador da Univ. Iberoamericana (Cidade do México). Doutor em C. Política pela FLACSO-México. Especializado em história institucional republicana de Cuba, transição política e democratização.