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O (anti)democrático Poder Judiciário

O Judiciário é o antídoto contra a tirania das maiorias ou um obstáculo à democracia? Nos últimos anos, a América Latina tem assistido a um processo lento e às vezes despercebido de controle ilegítimo das cortes supremas por parte de presidentes, como na Venezuela, El Salvador e Nicarágua, ou reformas institucionais que facilitam a nomeação de juízes leais ao presidente de turno, como na Bolívia e no Equador. O que é mais preocupante é que as estratégias para deslegitimar e subjugar o judiciário são feitas em nome da democracia.

No México, está ocorrendo uma série de episódios em que, pouco a pouco, tentou-se diminuir o papel da Suprema Corte de Justiça da Nação (SCJN) como um tribunal constitucional e um poder de controle do Legislativo e do Executivo. O argumento mais usado para atacar o judiciário é que o atual presidente Andrés Manuel López Obrador, seu partido Morena e seus partidos aliados foram eleitos por uma maioria contundente, portanto, não deveriam existir obstáculos de qualquer tipo para aplicar seus projetos de governo, independentemente de sua constitucionalidade.

Os episódios de confronto com o judiciário ultrapassaram as arenas da política institucional, chegaram às ruas e geraram reações virulentas nas redes sociais.

O Poder Judiciário como poder contra-majoritário em ação

A SCJN declarou inconstitucionais várias reformas legais impulsionadas por López Obrador, Morena e seus partidos aliados, e é provável que o faça com outras. Em abril, revogou o decreto que transferia a Guarda Nacional ao Exército e, em maio, o que classificava as grandes obras do governo como parte da segurança nacional por violar o direito de acesso à informação.

Diante desse último, López Obrador emitiu imediatamente outro decreto com as mesmas características, como um desafio e desacato à resolução da SCJN. Em maio, também interveio no conjunto de reformas, conhecido como Plano B eleitoral, declarando inconstitucionais as reformas das leis Gerais de Comunicação Social e Responsabilidades Administrativas, e suspendeu outras quatro reformas das leis eleitorais vigentes e impediu sua aplicação. 

Todas foram aprovadas pela maioria do Morena e seus aliados pela via rápida, sem deliberação e violando os procedimentos parlamentares. Essas reformas limitaram as faculdades das autoridades eleitorais e reduziram sua estrutura mediante o argumento de economizar recursos (e pôr em risco a organização das eleições). Dias depois, o governador do estado de Veracruz e seus funcionários de seu governo mobilizaram centenas de pessoas em frente ao prédio da SCJN carregando caixões com nomes de alguns ministros, incluindo sua atual presidente, Norma Piña, como uma ameaça de morte velada.

Embora essas resoluções da SCJN tenham estado no centro da atenção pública na primeira metade de 2023, outras reformas impulsionadas por Morena também foram declaradas inconstitucionais em 2022, como a criação de um Registro Nacional de Usuários de Telefonia Móvel (Panaut) ou que o Serviço de Administração Tributária (SAT) tivesse o poder de dispor de dados biométricos de usuários e divulgá-los sem o consentimento dos titulares, apenas para mencionar.

Também é provável que declare como inconstitucional a votação de 18 leis, a uma taxa de uma a cada 15 minutos, que ocorreu em 28 de abril deste ano, pelos senadores de Morena e seus aliados em uma sede alternativa, excluindo deliberadamente a oposição. Diante das ações da SCJN, o partido do governo, em vez de repor os procedimentos de forma democrática, com deliberação e adesão às normas, replicou as desqualificações do presidente e propôs iniciativas legais para que os membros da SCJN fossem eleitos de maneira direta pelos cidadãos, com o objetivo de controlá-la e neutralizá-la.

Dentro da própria SCJN, foi criado um bloco de três ministros que quase sempre votam a favor das iniciativas presidenciais e do partido no poder com argumentos absurdos, como assegurar que o Exército é uma instituição civil porque “seu chefe é o presidente da república” ou que uma decisão do congresso não pode ser revogada pelo judiciário, exceto por violações graves à Constituição, porque ele não é eleito pelo voto direto dos cidadãos. Quando membros do judiciário se curvam convenientemente à política do governo, eles deslegitimam a função do próprio órgão.

A fragilidade do republicanismo democrático

Raramente questiona-se a função do judiciário e seus poderes e legitimidade. Portanto, é necessário entender que o Judiciário desempenha um papel político dentro do Estado e não é só um intérprete da lei. Diferente dos legisladores ou outras figuras políticas que devem justificar suas ações e propostas aos cidadãos para serem votados, os membros do Judiciário trabalham na opacidade. Não há acesso às instituições de justiça, salvo por procedimentos que, no geral, os cidadãos desconhecem; eles mantêm um sistema de acesso à carreira jurídica altamente discricionária e seus membros gozam de privilégios salariais; sua linguagem é criptográfica e ininteligível; suas ações são difíceis de observar porque carecem da força do poder político.

Se somarmos a essas considerações o fato de que na América Latina em geral, e no México em particular, uma das principais demandas sociais é a prestação de justiça justa, rápida e ágil, e que isso está faltando em grandes proporções, entende-se por que tende a ser fácil deslegitimar esse poder com qualquer argumento, por mais inverossímil que seja. Mas essas considerações sobre o desconhecimento de seu funcionamento ou a corrupção que pode existir em seu interior não devem ser a bandeira para deslegitimar sua função, porque essa mesma falha se aplicaria a qualquer instituição política.

Há quase dois séculos, Alexis de Tocqueville apontou que o problema das democracias é que podiam cair na tirania das maiorias, uma força incontrolável que pode ir contra seus próprios direitos. Daí a necessidade de um judiciário independente e autônomo que obtém sua legitimidade de prestígio de seus membros e de suas decisões baseadas em raciocínios apegados a princípios, regras e leis.

As democracias exigem que suas elites políticas e seus cidadãos tenham um comportamento que reflita seu compromisso com a democracia. Diante dos processos de erosão democrática, as supremas cortes de justiça e seus poderes, como o controle constitucional das leis, são um meio de evitar essa deterioração, pelo qual, além dos indivíduos, devem ser defendidas de embates autoritários.

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Cientista político. Professor da Universidade de Guanajuato (México). Doutorado em Ciência Política pela Universidade de Florença (Itália). Suas áreas de interesse são a política e as eleições na América Latina e a teoria política moderna.

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