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O comércio dos agroalimentos: América Latina na encruzilhada da mudança climática

Devemos considerar como fazer a transição sem prejudicar as economias de subsistência nem as receitas decorrentes da exportação da produção agrícola extensiva, que são fundamentais para as finanças desses países.

Não há dúvidas de que a mudança climática, em especial associada à emissão de gases de efeito estufa e à degradação abrupta da biodiversidade, é a causa das catástrofes climáticas e epidemias imprevisíveis que estão se desencadeando no mundo. Segundo o consenso científico, ambas as calamidades derivam das condições de produção que prevalecem à escala global.

Dentro os modelos questionados estão inclusos os de sobrevivência quanto os cultivos extensivos gerados às custas da depredação de recursos naturais destinados à exportação.  Esse é o caso dos países latino-americanos imersos na matriz produtiva imposta pela dependência estrutural. Trata-se do modelo de inserção internacional consolidado no curso da longa e dolorosa história de pilhagens e degradações coloniais e neocoloniais.

Por um lado, em muitos países da América Latina, essa matriz produtiva e a importância para suas economias das exportações de commodities para terceiros países persistem e, em alguns casos, estão se enraizam. Isso é confirmado pela recente pesquisa de Rosário Campos e Romina Gayá em um trabalho conjunto de FAO e BID publicado este ano com um título que soa pretensioso: “Oportunidades para promover o comércio agroalimentar intrarregional na América Latina e no Caribe”.

Por outro lado, paradoxalmente, estão se multiplicando as inibições e os obstáculos impostos pelos países centrais ao acesso a seus mercados de produtos obtidos às custas da sustentabilidade ambiental.

O argumento da subsidiariedade

Esse é o núcleo de uma narrativa utilziada reiteradamente pela UE ao invocar a impossibilidade de cumprir o preceito exposto na Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, segundo o qual “as medidas de política comercial com fins ambientais não deveriam constituir um meio de discriminação arbitrária ou injustificável, nem uma restrição velada do comércio internacional… As medidas destinadas a tratar dos problemas ambientais transfronteiriços ou mundiais deveriam, na medida do possível, basear-se em um consenso internacional”.

Frente a essa diretriz, a UE se proclama guardiã de um bem público global. O manifesta, por exemplo, na exposição de motivos da Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece um Mecanismo de Ajuste em Fronteira por Carbono: “a mudança climática é, por sua própria natureza, um problema transfronteiriço que não pode ser resolvido exclusivamente com medidas nacionais ou locais. Uma ação coordenada da UE pode complementar e reforçar eficazmente as do âmbito nacional e local, e melhorar a ação climática. A coordenação da ação pelo clima é necessária a nível europeu e, no possível, a nível mundial, e a atuação da UE é justificada por razões de subsidiariedade”.

Obstáculos ao comércio para combater o desmatamento

O princípio da subsidiariedade reivindicado pela UE também respalda o Regulamento 2023/1115 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio de 2023, “relativo à comercialização no mercado da UNIÃO e à exportação da UNIÃO de determinadas matérias-primas e produtos associados ao desmatamento e à degradação florestal”.

Inicialmente, era previsto que o grosso das disposições estariam em vigor antes de julho deste ano, mas a magnitude e a relevância de sua cobertura podem ser ponderadas apenas ao analisar alguns itens contemplados no ponto de partida: gado e carne bovina; cacau e chocolate; café; grão e farinha de soja; madeira, papel e móveis.

Para o acesso ao mercado comunitário de matérias-primas e derivados que a UE considere pertinentes, serão requeridas certificações de rastreabilidade sobre a ausência de desmatamento no curso dos respectivos processos produtivos. As certificações deverão incluir a geolocalização das zonas de extração das matérias-primas, bem como avaliações de risco de desmatamento suscetíveis de afetar total ou parcialmente as perspectivas exportadoras de países que possuem produções de risco.

Ademais, este ano a Comissão também deveria avaliar a possibilidade de estender, mediante novas reformas legislativas, a mesma modalidade de proteção contra a degradação a outros ecossistemas, como pastagens, turfeiras e zonas úmidas.

Semelhantes tentativas de aplicar extraterritorialmente a normativa comunitária deram lugar a um questionamento através da carta enviada em setembro de 2023 por onze países da América Latina e do Caribe, três países asiáticos e dois africanos ao Conselho Europeu, à Comissão e à Presidência Pro-Tempore do Conselho.

A carta foi divulgada especialmente através do Ministério de Comércio, Indústria e Turismo da Colômbia. Em princípio, os países signatários citaram a excessiva carga administrativa e custos para responder a exigências como geolocalização e rastreabilidade, que, finalmente, teriam de ser absorvidos pelos produtores. Mas a objeção mais marcante foi a referida ao caráter contraproducente das medidas em relação à pretensão de fomentar cultivos sustentáveis, já que os pequenos produtores rurais seriam excluídos das cadeias de valor, não por desmatarem suas terras, mas pela impossibilidade de cumprir com as normativas.

A carta não discorre sobre os motivos seculares da desigualdade entre os agricultores em sociedades centrais e os das periferias. Mas ninguém ignora que, no caso da ruralidade latino-americana, a estrutura produtiva é o resultado de uma combinação letal induzida pelos processos coloniais e neocoloniais. Por um lado, a exploração desproporcional de imensos territórios e, por outro, as frágeis economias de subsistência com as quais os estratos sociais mais pobres e desamparados têm de contar. 

Embora o impacto da produção agrícola insustentável sobre as emissões de gases de efeito estufa seja bem conhecido, a questão só foi abordada recentemente na Cúpula do Clima de Dubai (COP 28). Lá, ao menos cento e trinta e quatro países assinaram uma Declaração ostensiva firmada pelos delegados de Estados Unidos, China, UE e de vários países periféricos, como todos os países centro-americanos e sul-americanos, com exceção de Bolívia, Guiana e Paraguai. A Declaração sobre Agricultura Sustentável, Sistemas Alimentares Resilientes e Ação Climática é o primeiro compromisso, mas ainda não vinculante para incluir os sistemas alimentares e a produção agrícola nos planos nacionais de mudança climática.

Como fazer a transição? O silêncio que atordoa

Uma vez reconhecida a necessidade de transformar as condições de vida da maioria da população nas periferias, deve-se perguntar como fazer a transição sem afetar as já muito penosas economias de subsistência e, ao mesmo tempo, a renda obtida com a exportação da produção agrícola extensiva da qual dependem as finanças públicas desses países.

Será possível reverter tais sistemas sem causar danos maiores aos já conhecidos? E será que os países presos entre a exclusão social interna endêmica e os termos assimétricos do comércio internacional também devem se encarregar de sua própria transformação produtiva?

Nos países centrais, os indivíduos estão obtendo o reconhecimento jurisdicional de seu direito à proteção ambiental frente aos Estados onde residem. O caso mais recente é o decidido pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ao se pronunciar sobre a responsabilidade do governo suíço, cujas medidas inadequadas para reparar os danos atribuídos à mudança climática foram consideradas uma violação dos direitos humanos.

Cabe lembrar a própria doutrina da UE: em matéria de mudança climática, o que está em jogo é realmente um bem público global. Os Estados nacionais que levantam a bandeira de economia verde e preservação da biodiversidade são as mesmas potências coloniais que promoveram as explorações ultramarinas e hoje soam o alarme. Não deveriam, então, assumir maior responsabilidade frente aos grandes custos de qualquer iniciativa de reparação fora de suas fronteiras?

Uma coordenação multilateral de programas para a reconversão das estruturas produtivas e dos sistemas alimentares parece muito distante. Entretanto, os países exportadores periféricos deveriam dispor efetivamente de assistência técnica e financeira para que possam cumprir as precauções ambientais adotadas pelos países centrais em suas condições de importadores.

Autor

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Professor and researcher at the Center for International Studies of the Univ. Institute of Lisbon (CEI/IUL). PhD in Contemporary Political Processes from the Univ. of Salamanca. Specialist in corruption, illegal markets and criminality.

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