Há dois meses do falecimento inesperado do ex-presidente Sebastián Piñera, um destacado bastião da centro-direita no Chile, seu legado flutua entre construção de pontes e instituições regionais e abertura de espaço para a direita populista radical no país do sul.
Luzes, sombras e nuances do legado de Piñera
Durante seus dois mandatos não consecutivos (2010-2014 e 2018-2022), Sebastián Piñera forjou fortes laços de cooperação econômica e humanitária com governos latino-americanos. Um exemplo disso foi a criação da Aliança do Pacífico (AP) em 2012, em conjunto com os ex-presidentes Juan Manuel Santos (Colômbia), Felipe Calderón (México) e Ollanta Humala (Peru). Até hoje, a AP tem significado um grande passo em matéria de integração econômica regional, facilitando a livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas entre os países parceiros. Piñera também desempenhou um papel fundamental no processo de paz colombiano com as FARC em 2012. Seu governo atuou como fiador e provedor de assessoramento para dar maior peso internacional às negociações com o grupo armado.
Com seus grandes acertos políticos, Piñera não ficou isento de controvérsias. As revelações dos Pandora Papers o implicaram em atividades financeiras questionáveis, que incluíam a venda de suas ações do projeto de mineração Dominga em 2010, realizada pouco antes de seu primeiro mandato presidencial. Isso, somado à sua suposta influência na tramitação e aprovação do projeto, que implicava um alto impacto ambiental, levou à sua primeira acusação constitucional. Além disso, durante seu segundo mandato, enfrentou acusações de abusos e violações de direitos humanos pelas forças de ordem durante os protestos sociais de 2018, o que resultou em uma histórica segunda acusação constitucional contra ele.
Apesar disso, várias figuras do atual governo reconheceram a importância e o legado do ex-presidente chileno. Inclusive o presidente Gabriel Boric, que foi um opositor ferrenho durante seu mandato, admitiu: “Como oposição, às vezes, durante seu governo, as reclamações e recriminações foram além do que era justo e razoável…. Atuou de uma maneira da qual discordava, mas sempre, repito, sempre, usando os mecanismos da democracia e da Constituição”.
A janela de oportunidade da ultra-direita chilena
Durante seu segundo mandato, Piñera e boa parte de seu setor político impulsionaram leis que permitiriam atualizar e regulamentar a lei de migração. Para alguns, seu governo deu sinais de que o país austral era uma casa de portas abertas para os migrantes devido a seus discursos em vários meios de comunicação e eventos internacionais.
A recente ascensão da ultra-direita na América Latina tem sido associada à mão dura contra as gangues criminosas (El Salvador), ao fim dos privilégios da “casta” política (Argentina) ou ao retorno e empoderamento de grupos insurgentes (Colômbia). No Chile, parece estar vinculada ao crime e à sua relação com a migração. Esta última, paradoxalmente, aumentou durante o governo Piñera.
Hoje, o crime e a migração parecem ter capturado a atenção da maioria dos chilenos. Segundo a pesquisa Pulso Ciudadano, do início de março, os chilenos entrevistados consideram o crime (51,9%) e a migração (31,4%) como os principais problemas do país. Da mesma forma, no início de abril, a pesquisa do CADEM mostrou que 90% dos entrevistados concordam que o país deveria impor mais restrições à migração e 70% acreditam que há um grande conflito entre chilenos e imigrantes.
Em contraste com esses dados, o relatório da Comissão do Governo do Interior, em meados de março, divulgou números sobre crimes registrados e sua relação com os imigrantes. O Inspetor Geral de Carabineros de Chile, Jean Camus García, declarou que, em janeiro de 2024, havia 14.995 detidos. Desses, 2.065 correspondem a migrantes na região Metropolitana. Portanto, segundo esses dados, 13,8% dos crimes foram cometidos por migrantes, enquanto 86,2% foram cometidos por chilenos.
Obviamente, a complexa incerteza e a desinformação que o país atravessa também se deve ao fato de que suas instituições e vários setores políticos (direita e esquerda) não estão à altura do desafio. Como resultado, a janela de oportunidade foi aproveitada por políticos da direita populista radical muito ousados, como José Antonio Kast, Rojo Edwards e Johannes Kaiser, que conseguiram canalizar a incerteza dos chilenos e ajustá-las a seus discursos e propostas programáticas. Algumas personalidades nacionais, como Alexis Kaiser – diretor da Fundación para el Progreso – manifestaram publicamente: “…em matéria de ordem pública, é preciso dar muito mais apoio aos Carabineros e às Forças Armadas, para que eles possam fazer seu trabalho, fazer seu trabalho significa que bala é disparada, sangue é derramado, pessoas são mortas…”
Com suas luzes e sombras, Piñera pretendia se tornar uma referência para o consenso, talvez porque já previa a radicalização de seu setor político. Agora, mais do que nunca, é necessária uma figura no centro político que possa articular as preocupações da sociedade dentro do marco democrático e que, por sua vez, deixe de ceder à polarização e à admiração de líderes populistas que corroem as bases da democracia. Afinal, como observou Winston Churchill: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”. Em consequência, a democracia é imperfeita – nós sabemos – mas é a melhor de todas as opções possíveis.
Autor
Cientista político e professora da Universidade Católica de Temuco. Doutoranda em Administração e Políticas Públicas - Universidade Nacional de Córdoba.
Professor do Depto. de Sociologia, C. Política e Adm. Pública da Univ. Católica de Temuco (UCT). Doutorando em C. Política na Univ. Diego Portales (UDP). Pesquisador do ICSO/UDP e do Centro de Políticas Públicas da UCT.