São inúmeras as batalhas que se impõem para o governo Lula. Nesses cinco primeiros meses de mandato uma se coloca como primordial: a urgência em torno da revogação do chamado Novo Ensino Médio, o NEM.
O ensino médio é uma etapa crítica da formação escolar que tem múltiplas funções, além da consolidação dos conhecimentos e habilidades básicas adquiridas ao longo dos anos anteriores de trajetória escolar, ele cumpre papel fundamental para as etapas posteriores da vida, pois atua na formação de cidadãos capazes de engajar-se socialmente e para possibilitar o ingresso tanto no ensino superior quanto no mercado de trabalho.
O NEM foi instituído por medida provisória em 2016, durante o Governo de Michel Temer, sem consulta à comunidade. A principal novidade da proposta, que passou a ser implementada em 2021 – caso do Estado de São Paulo – é flexibilização curricular, pois permite que a partir do segundo ano o estudante escolha seu itinerário formativo de acordo com seus interesses e vocação, seriam opções: ciências da natureza; ciências humanas; língua portuguesa e matemática e, profissionalizante.
Na prática o NEM implementou um aumento da carga horária e reestruturou o currículo, incluindo a oferta de formação profissionalizante aos alunos. O que pode parecer bom. Um problema central é que as escolas públicas não têm condições de ofertar esses itinerários, por falta de estrutura e de docentes.
De acordo com o Censo Escolar de 2022, 87,7 % dos alunos matriculados no ensino médio estão na rede pública de ensino, a maioria nas escolas estaduais; na rede federal temos apenas 3% das matrículas. Chamo a atenção para alguns dados: são cerca de 7,9 milhões de alunos matriculados no Ensino Médio, em comparação a 11,9 milhões nos últimos anos do ensino fundamental, ou seja, 92% dos jovens entre 15 e 17 anos estão matriculados – e cerca de 2,5% destes abandonam a escola; 18% dos alunos cursam o ensino médio no período noturno.
Diversos desafios marcam historicamente essa etapa do ensino no Brasil, dentre eles: a democratização do acesso, a evasão, a formação e capacitação de docentes, a infraestrutura das escolas, a quantidade de salas de aula ofertadas e a distribuição territorial das escolas.
A experiência de São Paulo tem demonstrado que o NEM ignorou a realidade de quase 90% dos alunos matriculados nesta etapa do ensino. Destaco dois problemas: por um lado, as dificuldades do poder público em ofertar infraestrutura, e formar, efetivar e capacitar seus docentes de acordo com o exigido pelos itinerários; por parte dos estudantes, a necessidade de trabalhar, o que impede/dificulta a frequência em período integral, somado a desmotivação perante a precariedade na oferta dos itinerários em muitas escolas.
Essa oferta depende da realidade de cada escola, no caso das públicas que sofrem com um apagão de professores de ciências da natureza e humanas, às vezes a única opção disponível aos estudantes é o itinerário profissionalizante, que passa a ser ofertado pelo professor que deveria estar ensinando outros conteúdos. Observa-se também um aumento do tempo ocioso nas escolas, reflexo das dificuldades enfrentadas para ofertar os conteúdos dos diversos itinerários e da sobrecarga dos docentes. Trata-se de um arranjo que desestrutura a carreira do docente, agora obrigado a dar aulas em várias escolas para fechar o horário e manter o salário, ao mesmo tempo que desobriga os governos de realizarem novos concursos, pois a carga horária das disciplinas que fundamentavam o ensino médio foi extremamente reduzida.
Uma das dificuldades de universalização do ensino médio é justamente a inserção precoce dos estudantes no mercado de trabalho, o que também os leva a questionar por quais razões seguir estudando. Para essa pergunta, temos ao menos duas respostas práticas que têm a ver com poder sonhar o futuro: a possibilidade de aumento de renda em função da escolarização e, a de cursar o ensino superior, com maior oportunidade de ascensão e mobilidade social.
Tais possibilidades dependem de uma economia estável, de um mercado de trabalho que seja capaz de gerar oportunidades de emprego qualificados, da ampliação e democratização da rede de ensino superior. Seria lógico buscar melhorar a qualidade da formação escolar e, ao mesmo tempo, investir no desenvolvimento econômico social, visando como futuro um país que seja economicamente independente, uma sociedade capaz de gerar riqueza e conhecimento, livrando-se da dependência produtiva e tecnológica que hoje aprofunda a precarização das relações de trabalho, as desigualdades e vulnerabilidades da população.
Mas o que temos é o inverso. O NEM precariza a formação escolar e aprofunda as desigualdades, pois substitui a consolidação de conhecimentos básicos pela oferta de uma profissionalização precarizada, pautada pelo mito do empreendedorismo e voltada para um mercado de trabalho “uberizado”. Vemos escolas ensinando nossos jovens produzirem brigadeiros gourmet, ou como se “tornarem milionários”. Nada contra ambos, mas tais habilidades não garantirão nem o ingresso no ensino superior, nem no mercado de trabalho acompanhado do incremento de renda e mobilidade social. Não formarão trabalhadores capacitados a impulsionar a mudança necessária para que o Brasil possa vir a ser um país economicamente independente.
Os itinerários profissionalizantes pautados pela formação do auto empreendedor de si mesmo, com um tom de discurso coach, são um reflexo do nosso atual mercado de trabalho, mas da falta de um quantitativo de docentes necessário para ofertar nas escolas, principalmente nas públicas, toda a gama de possibilidades previstas pelos itinerários formativos. Na prática, aprofunda-se o abismo já existente entre as escolas públicas e as particulares, essas sim têm condições de ofertar a seus alunos os possíveis itinerários sem precisar reduzir a carga horária de conhecimentos básicos necessários para uma formação cidadã crítica e qualificada.
O NEM tem efeitos perversos: desmotiva e aumenta a evasão escolar, precariza acentuadamente a formação dos jovens que estão na rede pública, elitiza ainda mais o acesso ao ensino superior, produz um desmonte paulatino do sistema educacional ao desestruturar a carreira docente, e forma mão de obra pouco qualificada para um país com um mercado de trabalho precarizado e economicamente dependente aprofundando as desigualdades.
É tarefa histórica do governo Lula reverter esse processo e ouvir a sociedade, a comunidade escolar e democraticamente discutir qual ensino médio e qual futuro queremos.
Autor
Cientista social. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Cândido Mendes (IUPERJ / UCAM). Doutora em Ciências Sociais pela Univ. Estadual de Campinas (UNICAMP).