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O isolamento do Brasil na luta contra a Covid-19

Coautora Rafaela Rodrigues

Muito tem se falado, dentro e fora do país, da hecatombe que se abateu sobre o Brasil desde o início da pandemia do novo Coronavírus. Recentemente, o Brasil foi considerado o país com a pior resposta global à crise sanitária do SARS-CoV-2, segundo o renomado Instituto Lowy, da Austrália. Nas últimas semanas, o Diretor-Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) chegou a afirmar que a situação da pandemia no Brasil é uma ameaça à América Latina e ao mundo.

O Brasil à contramão da sua política exterior

O Brasil é hoje um dos países com mais restrições no exterior para a entrada de viajantes. Não poderia ser diferente, considerando a constante violação sem precedentes do direito à vida e à saúde dos brasileiros, promovida diretamente pelo Governo Federal e seus representantes.

A cortina de fumaça levantada através das fake news e da guerra de ódio que se instaurou no país desde a última eleição, em 2018, potencializa um emaranhado de fatos e versões. Neste cenário, a atuação e os discursos do presidente Jair Bolsonaro, atualmente sem partido, muitas vezes têm o objetivo de mascarar a real situação do país, afastando o foco da má-gestão do Executivo Federal -especialmente do Ministério da Saúde- no combate à pandemia.

Em retrospectiva, o somatório dos atos contra à saúde pública durante a pandemia de Covid-19 no Brasil repercute um movimento sistematicamente contrário à história propositiva do país, tanto no contexto das políticas sanitárias quanto nos acordos de cooperação internacional na área. É de se lamentar que mesmo com um dos maiores Sistemas de Saúde pública e Universal (SUS) do mundo, o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, tenha dito em solenidade oficial que, antes de assumir o cargo, “nem sabia o que era o SUS”.

Ideologias políticas à parte, nada do que acontece no Brasil atualmente representa o histórico de atuação do país na área da saúde, tampouco na política exterior.

Auge e crise da diplomacia brasileira na área da saúde

A diplomacia brasileira, ao longo da maior parte de sua história republicana, foi pautada pela autonomia e pelo pragmatismo, paradigmas abandonados pelo atual governo.

Os governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), por exemplo, ampliaram as parcerias internacionais e a participação em diversos fóruns globais. Algumas iniciativas, muitas lideradas pelo então Ministro da Saúde José Serra, fortaleceram uma política inovadora de acesso a medicamentos para o HIV/AIDS, especialmente ao associar o tema saúde ao conceito de direito humano fundamental.

No âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), a Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública, de 2001, é um exemplo do protagonismo brasileiro ao propor a reunião interministerial que viabilizou a interpretação dos acordos internacionais de propriedade intelectual à luz do interesse público, defendendo a primazia da saúde sobre as regras do comércio internacional. 

No embalo da redução de custos dos medicamentos antirretrovirais, o Brasil decretou pela primeira vez, em 2007, a quebra da patente de um medicamento estrangeiro. O então presidente Lula da Silva e o Ministro da Saúde José Gomes Temporão deram origem ao processo com a publicação da portaria 886/2007, declarando o medicamento Efavirenz, do laboratório americano Merck, como de interesse público. Os governos do PT de Lula e Dilma Rousseff impulsionaram a atuação internacional do Brasil na agenda da saúde, muito pautada no fortalecimento da cooperação entre os países do chamado Sul Global.

Em 2011, os BRICS, aliança entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, promoveram uma reunião de seus Ministros da Saúde, na China, cujo objetivo foi viabilizar o acesso universal a medicamentos. Na ocasião, foi aprovada a transferência de tecnologia entre os integrantes do bloco e outros países em desenvolvimento para aumentar a capacidade de produção de medicamentos a preços acessíveis.

Para o Brasil, um dos maiores importadores de insumos laboratoriais e hospitalares da China e da Índia, dar seguimento às políticas de cooperação e alianças comerciais de outrora maximizariam ganhos políticos, econômicos e sociais de curto prazo, sobretudo durante a pandemia.

No entanto, o atual chanceler brasileiro Ernesto Araújo insiste na teoria do “vírus chinês” como uma forma de dominação de outros países, além de atacar publicamente a OMS, órgão no qual, inclusive, o Brasil já ocupou um dos 34 assentos do Conselho Executivo entre 2004 e 2007, tendo sido reeleito para mais três anos, entre 2008 e 2011. Tais ações não tiveram outro efeito que não adiar ainda mais o envio de novas vacinas para o Brasil.

A defesa da saúde enquanto direito humano fundamental

As retrospectivas nos trazem um sentimento grande de distopia. Ao se apresentar para o mundo com uma mensagem negacionista, que desqualifica a ciência, dissemina informações falsas e promove institucionalmente o aumento do número de mortes através do não-combate à pandemia, o Brasil perde status internacional na área da saúde e cada vez mais um número maior de vidas em seu território.

Com esta postura se perde também a chance de se articular em bloco para que países do Sul Global recebam mais doses, uma vez que China, Índia e Rússia já desenvolveram suas próprias vacinas, além dos Estados Unidos e Reino Unido. Segundo números divulgados em janeiro pela OMS, para cada 39 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 divididas entre 49 países desenvolvidos, um país pobre recebe apenas 25 doses.

A igualdade na imunização é um pressuposto básico para acabar com a pandemia, porém, após décadas de renomados programas brasileiros de vacinação, o presidente Bolsonaro afirma publicamente que não tomará a vacina contra a Covid-19 e encoraja a população a fazer o mesmo, referindo-se a possíveis efeitos colaterais.

As consequências não param. Premiado internacionalmente pelos seus programas sociais de referência na luta contra a fome (como em 2010, na ONU), o Brasil retrocedeu a passos largos: em 2021, se prepara para encarar a realidade de mais de 60 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza após o fim do auxílio emergencial.

É preciso combater a propaganda institucionalizada do Governo Federal em desacordo com as práticas sanitárias vigentes, a divulgação de notícias falsas ou cientificamente não comprovadas, e os seguidos atos normativos da União contrários à saúde pública, incluindo os que restringem ou atrasam as respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia.

A mobilização política e, principalmente, da sociedade em torno da saúde enquanto direito humano fundamental, segue sendo crucial para consolidar as conquistas já obtidas, evitar novos retrocessos e promover avanços imediatos no âmbito da maior crise sanitária do século.  

Professor da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutor em Ciência Política (Iesp-Uerj). Possui experiência na área de Ciência Política e Relações Internacionais, com foco em Brasil e América Latina.

Rafaela Rodrigues é doutoranda em Política e Relações Internacionais no “Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil” (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Autor

Professor da Faculdade de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ. Tem experiência na área de Ciência Política e Relações Internacionais, com ênfase em Brasil e América Latina.

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