Coautora: Marianna Albuquerque
O mês de outubro foi repleto de eventos na América do Sul: Eleições presidenciais foram realizadas em Argentina, Bolívia e Uruguai , uma eleição local na Colômbia, e uma crise institucional no Peru, envolvendo um conflito entre a base fujimorista e a oposição, que redundou no fechamento do Congresso, ainda no final de setembro.
Os resultados dos processos eleitorais na região, em pelo menos dois dos casos, não apenas apontam mudanças nas relações de forças domésticas como sugerem a importância de fatores específicos a cada um dos contextos nacionais. Na Colômbia, a despeito das tensões não resolvidas no processo de paz, as eleições nacionais sugerem uma reconfiguração política no país, com predomínio dos partido de centro esquerda, a exemplo da eleição, para a prefeitura de Bogotá, da ex-senadora, Claudia López, da Aliança Verde, primeira mulher a ocupar o cargo. De origem popular, é assumidamente gay e defensora do processo de paz com as Farcs.
Na Argentina, a vitória da chapa Alberto Fernandéz e Christina Kirchner, ainda no primeiro turno, representou uma reação da população ao governo de Maurício Macri, às reformas pró-mercado e ao aumento do endividamento externo, que jogaram o país em uma recessão profunda.
Na Venezuela, assistimos a naturalização de uma crise institucional que se prolonga desde a morte de Hugo Chavéz e a sucessão do eternamente contestado Nicolás Maduro. O país tem, atualmente, dois presidentes, um eleito e outro autoproclamado, vivendo uma crise econômica e o êxodo contínuo de venezuelanos para os países vizinhos[1].
As revoltas populares no Equador e no Chile foram, porém, os dois eventos mais significativos do ‘Outubro Sul-Americano”
As revoltas populares no Equador e no Chile foram, porém, os dois eventos mais significativos do “Outubro Sul-Americano”, pois sugerem do tamanho da reação popular às medidas de austeridade fiscal que se tornaram dominantes desde os anos 90. No Equador, a revolta popular foi causada pela eliminação do subsídio aos combustíveis, vigente nos últimos 47 anos. Seguiram-se manifestações e protestos generalizados, com a participação de estudantes, camponeses, trabalhadores urbanos, movimentos das mulheres, ecologistas e artistas. O governo autorizou a utilização das Forças Armadas e declarou estado de exceção. Vinte mil indígenas marcharam na direção de Quito, seguindo-se a transferência da capital para Guayaquil. Ao final, o governo revogou o fim dos subsídios e anunciou um processo de diálogo com os movimentos sociais, que denominou “diálogo para paz”.
O processo chileno trilhou trajetória semelhante. Ao anúncio do aumento das tarifas de transporte, seguiu-se quase que imediatamente a reação popular liderada por estudantes secundaristas. As Forças Armadas foram convocadas para reprimir os protestos, e o governo declarou estado de exceção nas cidades de Santiago e Valparaíso. Em seguida, revogou o aumento do preço dos transportes, declarou toque de recolher em Santiago e anunciou um pacote de medidas sociais. Apesar do recuo do governo, os protestos continuaram, reunindo 1 milhão de pessoas em uma manifestação pacífica na cidade de Santiago, a maior da história do Chile. O governo pediu a renúncia de ministros e convocou um diálogo com a oposição, prometendo a realização de reformas estruturais.
O que estes eventos sugerem sobre a dinâmica política da região? Em primeiro lugar, a diversidade dos processos indica que suas origens e possíveis explicações tem por base fatores específicos de seus respectivos contextos nacionais. Para não se cometer erros de interpretação, o olhar analítico deve ser o da pluralidade.
Apesar de reafirmar a diversidade, é possível estabelecer elementos comuns nas revoltas populares no Equador e no Chile e nas eleições argentinas. No Chile, a revolta popular se concentrou na crítica à desigualdade, produzida por trinta anos de governos neoliberais e no clamor por dignidade. O sistema de aposentadoria chileno, com base na capitalização individual, adotado ainda no regime ditatorial de Pinochet, levou ao empobrecimento de amplas camadas da população de aposentados que hoje recebem cerca de 60% do valor do salário mínimo.
Impossível não fazer menção ao “duplo movimento” de Karl Polanyi que já em 1944, em seu clássico “A Grande Transformação”, alertava para o esgarçamento do tecido social quando o moinho satânico do mercado autorregulado se torna o centro da vida social, ameaçando o componente humano e natural do organismo social. Nestas condições, segundo Polanyi, é esperado que a sociedade se mobilize em busca de proteção. Assim como ocorreu na conjuntura por ele estudada, a sociedade industrial do século XIX na Inglaterra, a mesma reação da sociedade civil para sua proteção se manifestou nas revoltas populares no Equador e no Chile, bem como nas eleições argentinas de 2019.
Um outro aspecto que chama a atenção nos casos equatoriano e chileno é a diversidade dos setores da sociedade civil mobilizados pelos protestos. Participaram pessoas que normalmente não se mobilizam para este tipo de demonstração, as assim chamadas “pessoas comuns”. O clamor por dignidade, palavra de ordem naquelas manifestações, sugere um mal-estar social generalizado na população chilena: a reação não foi pelos 30 pesos, mas pelos 30 anos.
Se as causas dos eventos acima elencados são endógenas, não há razão lógica e analítica para se postular que estariam em ação forças ocultas do “eixo do mal” constituído por Cuba-Venezuela. Da mesma forma, a menos que se adote um ponto de vista ideológico, desprovido de razão, não se deve esperar um contágio para os países vizinhos. A não ser que as condições estipuladas por Polanyi se façam presentes e ponham em marcha o duplo movimento e a consequente reação popular ao moinho satânico.
As crises não se confinaram no mês de outubro. Logo no início de novembro, a América do Sul vivenciou a liberdade do ex-presidente Lula, no Brasil, após mais de 500 dias presos. A soltura deriva da mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da possibilidade de prisão após segunda instância. Em seu primeiro discurso em liberdade, o tom de Lula indica que este voltará a ser o líder da oposição contra o avanço conservador no Brasil.
Na Bolívia, havia a demonstração de um certo cansaço eleitoral após três mandatos consecutivos de Evo Morales. A oposição considerava que, ao concorrer a eleição, o presidente estava violando normas que impediam um novo mandato. O resultado: um processo pouco transparente na contagem de votos provocou a acusação de fraude eleitoral, opinião chancelada pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Seguiram-se manifestações da oposição, e as Forças Armadas entraram em cena. O comandante do Exército Williams Kaliman sugeriu publicamente que Morales renunciasse. Horas depois, o presidente renunciou, juntamente com os demais membros da linha sucessória. Morales acusou seus dois principais opositores, Carlos Mesa e Luis Fernando Camacho, de articularem um golpe.
Essa instabilidade sul-americana ocorre exatamente no momento em que inexistem instituições regionais que possam atuar como. A União de Nações Sul-Americana (Unasul), criada em 2008, era o fórum em que havia a previsão de lidar com tais temas, mas desde abril de 2018 a organização encontra-se esvaziada. Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru, Equador e Guiana juntaram-se ao processo de substituição da Unasul pelo Foro para o Progresso da América do Sul (Prosul) como instrumento de integração regional. De caráter conservador, o Prosul prescinde de institucionalidade e, até agora, não foi utilizado como instância de integração.
Foto de todosnuestrosmuertos em Foter.com / CC BY-NC-SA
Autor
"Professora e pesquisadora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Univ. do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Coordenadora do Observatório Político Sul-Americano (OPSA). Doutora em Ciência Política pela Vanderbilt University.
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