O Panamá enfrenta a maior crise política desde a transição para a democracia, com manifestações e comícios em massa e fechamentos nas principais vias do país, o que está gerando escassez em comércios e postos de gasolina, fechamento de escolas e universidades e perdas econômicas importantes, segundo a Câmara de Comércio. Também surgiram piquetes em frente à mina e ataques a representantes políticos, incluindo a residência do próprio Presidente da República na província de Colón.
Na sexta-feira, 20 de outubro de 2023, a Assembleia Nacional aprovou o contrato com a Minera Panamá (uma subsidiária da empresa canadense First Quantum Minerals) no terceiro e último debate, sancionando assim a Lei 406. Esse processo de aprovação foi rápido, em dois dias, e ignorou vários setores da população, o que gerou uma rejeição popular retumbante. A resposta foi rápida, com a convocação de um protesto nacional no domingo, 22 de outubro, organizado por coletivos como o SUNTRACS (o maior sindicato de trabalhadores da construção civil), ASOPROF (sindicato de professores) e Sal de las Redes (organização de jovens), além de dezenas de outras organizações em todo o país, com o objetivo de revogar a Lei 406 e aprovar uma moratória para a mineração.
Os protestos denunciam o impacto ambiental da atividade de mineração a céu aberto no país e apontam que o contrato contém vantagens arbitrárias para a empresa, como a possibilidade de expropriar terras dentro e fora da área concedida, isenções fiscais, manejo de portos e aeroportos e a falta de fiscalização do Estado, entre outras. Para uma grande parte dos cidadãos, essas vantagens fazem com que esse projeto de mineração pareça um enclave colonial controlado por um poder estrangeiro, o que tem ecos claros das lutas do século passado pela recuperação do Canal. Frente à rejeição em massa, o governo argumentou que o contrato de mineração é uma oportunidade de cumprir os pagamentos de pensão em um contexto de problemas financeiros do Fundo de Seguridade Social.
Um país caracterizado por sua estabilidade política e pela ausência de grandes conflitos, que o próprio ex-vice-presidente da República Ricardo Arias Calderón definiu na década de 1990 como “um país sem conflitos”, em 16 meses sofreu duas das maiores mobilizações de sua história. O auge dos protestos não é alheio às longas quarentenas pela Covid-19, uma das mais rigorosas da região, que levou a uma queda de 17,9% no PIB. Segundo o relatório do BID Impacto social de la pandemia del Covid-19 en Panamá y análisis de eficiencia de los programas de transferencias monetarias, a pobreza no país aumentou 12,5% e a pobreza extrema cresceu 6,8% em 2020; a classe média despencou, encolhendo quase 11%, enquanto o índice de Gini aumentou 3,8 pontos, ficando em 54,1. Além dos efeitos socioeconômicos, no entanto, algo parece ter se rompido na ordem social durante as quarentenas: como uma espécie de terremoto, as medidas adotadas para lidar com a pandemia exacerbaram outros déficits, como suspeitas sobre a má gestão de recursos públicos. Na II Pesquisa de Cidadania e Direitos do CIEPS (2021), a corrupção passou a ser percebida como o principal problema do país. A pandemia teve um efeito desestabilizador na ordem social panamenha, dificultando sua reprodução normal e a continuidade de certa inércia e funcionamento.
Em julho de 2022, devido à alta dos preços, ocorreram protestos em todo o país e as grandes alianças de profissionais, professores, médicos, trabalhadores da construção civil, indígenas e cidadãos anônimos foram construídas. Mas no caso das manifestações de outubro de 2023, essas alianças se uniram a setores ainda mais abastados, com manifestações ocorrendo em bairros de alto nível socioeconômico, como Clayton. E não ocorreram só essas irrupções inesperadas, mas até mesmo sindicatos, como o de médicos e advogados, realizaram manifestações contra o contrato de mineração, dando às mobilizações um caráter transversal. Ao mesmo tempo, se destaca o papel dos jovens, que lideraram muitas das marchas e manifestações. No estudos de opinião, a juventude panamenha manifesta um alto grau de descompromisso com a democracia, as instituições e os mecanismos tradicionais de participação política, mas, por outro lado, expressam um alto grau de conscientização ambiental, priorizando a proteção da natureza em detrimento do crescimento econômico mais do que outras faixas etárias, levando em conta que essa conscientização é em massa em todas as faixas etárias, segundo os dados da III Pesquisa de Cidadania e Direitos do CIEPS.
Além de uma maior transversalidade nos protestos, da presença de novos atores e do papel de destaque dos jovens, a principal diferença entre as mobilizações de julho de 2022 e as de outubro de 2023 é que, no primeiro caso, o objetivo era afirmativo-propositivo, com demandas como a redução dos preços dos combustíveis, da cesta básica e da energia, o pedido de cumprir com os investimento prometido em educação, a melhoria do acesso a medicamentos, entre outras medidas. Diferente desses, os novos protestos são caracterizados pela oposição, pela recusa do contrato de mineração, pela objeção ao extrativismo, pela impugnação a uma forma de governar que segue interesses espúrios; ou seja, contém um grande não. Esse tipo de negação dificulta a operação dos arranjos particulares e isolados permanentes que têm protagonizado as fórmulas de resolução de conflitos, uma lógica transacional que entrou em crise e não é mais operacional, pois não é mais capaz de atender à solução coletiva e geral exigida pela população.Antes da pandemia, o Panamá tinha um modelo econômico exitoso em termos de crescimento que dependia da ampliação do Canal e das externalidades que ele gerava, mas, após concluir a expansão, após a morte da galinha dos ovos de ouro, qual deve ser o próximo modelo? Os fortes protestos apontam que a população não quer a mineração, mas se o extrativismo não é o modelo que responderá à demanda por desenvolvimento econômico sustentável, à atenção necessária às dívidas sociais históricas e ao imperativo de uma governança transparente, sem interesses espúrios e que gere confiança, então uma das perguntas mais importantes que a sociedade panamenha deve responder, especialmente em um momento prévio às eleições gerais de 2024, é qual deve ser a alternativa.
Autor
Pesquisador do Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais, AIP Panamá. Doutor em Sociologia e Antropologia pela Universidade Complutense de Madri. Especialista estudos de opinião pública.