O fim da Guerra Fria foi saudado com grande otimismo pela comunidade internacional e, em particular, pela Organização das Nações Unidas (ONU), que anunciou ao mundo os grandes dividendos da paz. Décadas de um mundo dividido e enfrentado em grandes blocos tinham sido deixadas para trás, e se dava um passo para uma nova oportunidade para o desenvolvimento e a democracia globais. Este otimismo, inclusive, levou alguns a acreditar que se tinha chegado ao fim da História. As décadas que se seguiram aos anos 1990 mostraram rapidamente que os conflitos não tinham desaparecido de cena e que o sistema unipolar emergente não estava isento de grandes riscos. Longe de ter chegado à sua conclusão, a História só continuava no seu caminho.
Os vinte anos que se seguiram ao fim da Guerra Fria mostraram um cenário com novas turbulências (a mais grave, a emergência do terrorismo internacional como uma ameaça mundial), mas onde a esperança de um mundo menos dividido e polarizado permaneceu. De fato, em 2010 parecia que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Federação Russa estavam dispostas a celebrar algum tipo de matrimônio por interesse.
No entanto, as desavenças do matrimônio logo chegaram. A crise em torno da posição da Ucrânia tornou-se evidente em 2013 e desde então até a eclosão da guerra, nove anos mais tarde, a comunidade internacional não foi capaz de impedir a ameaça de invasão da Federação Russa a seu país vizinho.
Por outro lado, há a coincidência de a guerra na Ucrânia não ser apenas um acontecimento atroz, mas também um sintoma de um processo global: o estabelecimento das bases de um novo mundo que está sendo formado, uma situação que foi vista como correspondente a uma nova armadilha de Tucídides; isto é, o surgimento de um centro emergente de poder mundial que pode (ou não) deslocar o velho centro em decadência, algo que com frequência tem sido resolvido mediante guerras.
O livro Destined For War do Professor Graham T. Allison mostra que isto já aconteceu várias vezes ao longo da História mundial. É verdade que esta possibilidade tem na atualidade um filtro importante: nos encontramos na era nuclear. O cenário da guerra mundial do século passado já não se pode repetir, a menos que os concorrentes queiram morrer na tentativa.
Mas além das formas que se possa assumir esse hipotético conflito militar, o que parece inegável é que o mundo atual que está sendo formado parece regressar à divisão que pensávamos ter ultrapassado. Tudo indica que está sendo estabelecida uma competição crescente entre dois pólos: uma aliança entre duas potências nucleares, China e Rússia, com uma orientação autoritária, frente a um Ocidente, também nuclear, onde a democracia busca defender-se de seus inimigos internos e externos.
É evidente que, como no passado, este conflito bipolar não descarta a existência de um conjunto de países emergentes, cujo maior exemplo é a Índia, que jogam numa posição intermediária, da mesma forma que também fez no século passado o movimento dos não alinhados. Também podem ficar (em uma posição entre os dois blocos) uma boa quantidade de países latino-americanos. No passado, contudo, isto não diminuiu a divisão do mundo que determinou a Guerra Fria.
O choque ideológico e cultural entre estes dois campos emergentes tem também relatos justificativos. Do Ocidente, há uma referência à necessidade de forçar o outro bloco a abandonar as ações do poder sem regras, enquanto a China e a Rússia concordam em exigir o desaparecimento definitivo do mundo unipolar que surgiu em 1990 e a conquista de uma multipolaridade livremente escolhida. Não é necessário o esforço de comprovar até que ponto este quadro internacional pode ser entendido como uma nova guerra fria, mas o que é inegável é que um mundo novamente dividido está sendo formulado.
Esta divisão global se retroalimenta da profunda polarização sócio-cultural que experimenta a maioria dos países ocidentais, algo que também se evidencia em muitos países latino-americanos. A vitória estreita de algumas forças progressistas na região levou alguns a acreditar que estamos na presença de uma nova onda rosa. No entanto, a verdade é que, ao contrário da primeira década deste século, não houve uma mudança do eleitorado para candidatos de esquerda, mas sim governos progressistas em sociedades que estão praticamente divididas ao meio.
Esta divisão sócio-cultural, que também afeta a Europa, serve de base em alguns países para uma polarização política exacerbada que, com frequência, é um terreno fértil para ofertas populistas de distinta orientação.
O prolongamento da guerra na Ucrânia é um sintoma de que o horizonte de um mundo dividido pode prolongar-se durante boa parte do século XXI. Do mesmo modo, um fim precoce da guerra na Ucrânia seria um sinal de que a comunidade internacional é capaz de inverter este regresso a um mundo dividido. É por isso que propostas como a do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva para acabar com a guerra o mais depressa possível são tão relevantes. Não só mostra que os países intermédios têm a coragem de sair da retórica do confronto e fazer boas propostas, mas que, se de fato favorecerem uma detenção da guerra, contribuirão para que nas próximas décadas se possa desenvolver um mundo menos dividido.
É claro que não é muito provável que as partes em conflito levem a sério as propostas pacificadoras, mas é saudável que saibam que nem todo o mundo se alinha com algum dos blocos que estão sendo formados, e que muitos não estão dispostos a olhar de lado um enfrentamento bélico que causa tanta destruição e morte.
Autor
Enrique Gomáriz Moraga tem sido pesquisador da FLACSO no Chile e outros países da região. Foi consultor de agências internacionais (UNDP, IDRC, BID). Estudou Sociologia Política na Univ. de Leeds (Inglaterra) sob orientação de R. Miliband.