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Os bolsonaristas fugitivos que buscam refúgio na Argentina

Apesar do pessimismo e esfriamento das relações Argentina-Brasil desde que Milei assumiu, lideranças do Palácio San Martín e Itamaraty têm logrado manter certa cordialidade e funcionalidade.

Em maio de 2024 veio à tona que diversos condenados ou investigados por participação nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 conseguiram deixar o Brasil de forma irregular, indo para países vizinhos. Mais recentemente, o governo argentino divulgou que pelo menos 65 deles haviam solicitado refúgio no país, e que suas solicitações seriam analisadas caso a caso pela Comisión Nacional para los Refugiados (CONARE).

Ainda que o Brasil esteja preparando pedidos de extradição para estes foragidos, a lei argentina e estândares internacionais determinam que nada poderá ser feito até que suas solicitações de refúgio sejam decididas pela CONARE.

Por que a Argentina acolheu os pedidos de refúgio de brasileiros?

Em geral, países manejam as migrações dentro de seus territórios como bem entendem. No entanto, o instituto do refúgio é uma exceção, sendo extremamente bem regulado por instrumentos internacionais. Dentre eles, existe a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, ratificada por 146 países, incluindo a Argentina (que o fez em 1961). O documento estabelece critérios para o reconhecimento do status de refugiado, bem como o princípio da “não-devolução”, que proíbe países de retornarem refugiados e solicitantes a situações de perseguição ou de grave violação de direitos humanos.

Assim, faz-se necessário que países analisem e decidam sobre pedidos de refúgio antes de tomar qualquer outra medida. Isso explica, em parte, o porquê de o governo argentino ter acolhido os pedidos de refúgio de forma quase automática e argumentar que nenhuma extradição será feita antes dos mesmos serem adjudicados. Como solicitantes, estes brasileiros recebem um documento de identificação, renovável a cada 90 dias, acesso a serviços públicos e trabalho, e podem viajar para fora da Argentina mediante autorização da CONARE.

Como será a análise das solicitações?

A CONARE, que analisará as solicitações, é uma comissão que congrega representantes do governo argentino e outras organizações. Seu formato é bastante similar ao que existe em outros países latino-americanos, incluindo o próprio Brasil, visto que, em décadas passadas, este modelo foi bastante difundido na região pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR).

Mesmo que os solicitantes brasileiros já tenham detalhado aquilo que acreditem fundamentar seus pedidos de refúgio nos seus formulários de solicitação, a lei argentina requer que eles sejam convocados para entrevistas de elegibilidade. Durante essas entrevistas, oficiais técnicos da CONARE questionarão os motivos que fundamentam a fuga do Brasil, bem como a credibilidade dos relatos prestados pelos solicitantes. Depois, estes oficiais irão contrastar as informações dadas pelos solicitantes com outras fontes (incluindo pesquisas internas), averiguarão sua veracidade, e emitirão um parecer técnico, que vai a voto pela Comissão em uma sessão plenária. Dentre os membros votantes da CONARE estão o Instituto Nacional contra a Discriminação, Xenofobia e Racismo (INADI) e representantes de quatro pastas do governo: Interior, Relações Exteriores, Justiça, e Capital Humano. A deliberação dos casos ocorre por maioria simples.

Vale lembrar que não existe um prazo para que os brasileiros sejam convocados para suas entrevistas de elegibilidade, muito menos para que a CONARE tome uma decisão sobre seus casos. Segundo o ACNUR, a adjudicação de casos no país pode levar “de dois a cinco anos, ou mais”. Caso um pedido seja indeferido, há chances de recorrer em mais duas instâncias.

Qual será o desfecho?

Um dos motivos para reconhecimento do status de refugiado previstos na lei argentina e na Convenção de 1951 é o bem-fundado temor de perseguição em virtude de opiniões políticas, o que alguns afirmam ser o caso dos brasileiros que solicitam refúgio na Argentina. Porém, o fato destes fugirem de condenações ou investigações relacionadas a crimes, especialmente aqueles de caráter político, não necessariamente os tornam vítimas de perseguição política. Nestes casos, faz-se necessário, dentre outros, averiguar se as investigações e punições aos quais os solicitantes foram submetidos no país de origem ocorreram em conformidade com a lei, estândares internacionais de direitos humanos, e de forma justa. Apenas sinais claros de que os solicitantes foram (ou podem vir a ser) vítimas de tratamento legal arbitrário e/ou punições excessivas por conta de suas opiniões políticas deveriam resultar no deferimento de seus pedidos. Até o momento, observadores internacionais que acompanham a proteção dos direitos humanos no Brasil não notaram problemas nas investigações e sentenças direcionadas aos envolvidos no 8/1.

Isso, contudo, não significa que o posicionamento da CONARE sobre essas solicitações já pode ser dado como certo. Mesmo que oficiais de elegibilidade da Comissão emitam pareceres de caráter técnico sobre as solicitações, as mesmas vão a voto por representantes ministeriais.

Assim, ainda que o porta-voz da presidência argentina Manuel Adorni tenha argumentado que a decisão sobre estas solicitações esteja fora da alçada do governo, em grande parte serão representantes da administração Milei que irão decidi-las. Desde sua posse, o governo Milei já substituiu pelo menos três membros votantes da CONARE. Foram apontados novos representantes das pastas de Relações Exteriores, Justiça, e Interior—a última atua como presidente da Comissão. Logo, além de influenciarem a pauta das sessões plenárias (podendo priorizar casos), representantes do governo Milei podem facilmente obter uma maioria simples durante as deliberações.

Não é incomum que países utilizem o refúgio como ferramenta de política externa, buscando deslegitimar ou auxiliar governos estrangeiros através do reconhecimento (ou não) de seus nacionais como refugiados. Pode-se ver o caso de como o governo Bolsonaro favoreceu o reconhecimento de Venezuelanos como refugiados, por exemplo.

Apesar do pessimismo e esfriamento das relações Argentina-Brasil desde que Milei assumiu, lideranças do Palácio San Martín e Itamaraty têm logrado manter certa cordialidade e funcionalidade. O que está a ver é se Milei abandonará isso em prol de sua agenda particular. No meio tempo, a diplomacia brasileira deve continuar promovendo um maior entendimento com o líder argentino e estimular mais celeridade aos casos que correm na CONARE.

Autor

Graduado em Relações Internacionais pelo Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro. Mestre em Ciência Política pela Universidade de Carleton (Canadá) e doutorando em Ciência Política pela mesma instituição.

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