No Panamá, em 13 de março de 2020, o Conselho de Ministros declarou um “Estado de Emergência Nacional” mediante a Resolução No. 11. Nesse dia, o Poder Executivo emitiu um Decreto ordenando, entre outras coisas, “medidas sanitárias extremas à luz da declaração de uma pandemia”, e ordenou às autoridades regionais e locais que estabelecessem mecanismos de vigilância para garantir o cumprimento das medidas sanitárias.
Desde então, o governo panamenho emitiu regulamentações que tiveram efeitos secundários sobre a vida das pessoas. Um deles foi o Decreto 577 de 24 de março de 2020, que declarou uma quarentena total e delegou a questão da mobilidade das pessoas ao Plano Protégete Panamá. Como resultado, a Resolução 360 foi emitida com o objetivo de adotar novas medidas para restringir a mobilidade de pessoas com base no sexo e no número de identificação.
Peru, Colômbia e Panamá foram os únicos três países do mundo a aplicar uma medida semelhante. No entanto, tanto a Colômbia como o Peru tiveram medidas de curta duração. No Panamá, a medida durou quase seis meses, de 30 de março até 13 de setembro de 2020.
A medida consistia em que as pessoas pudessem circular de acordo com o último número de sua identificação em um horário definido para acessar serviços essenciais por duas horas. As mulheres poderiam sair às segundas, quartas e sextas e os homens às terças, quintas e sábados. Aos domingos, ninguém podia circular.
Juntos, pesquisadores da London School of Economics (Clare Wenham, Corina Rueda e Daniela Meneses) e do Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais (CIEPS) iniciaram pesquisas para entender os impactos sociais desta medida. Isto foi feito através de um estudo qualitativo no qual representantes de grupos da sociedade civil e funcionários estatais foram entrevistados. O estudo revelou a dificuldade de acesso a recursos básicos e discriminação.
Acesso aos recursos básicos
A política desagregada por sexo e carteira de identidade no Panamá aumentou as barreiras ao acesso a recursos básicos no nível da saúde. Algumas instalações de saúde terciária foram designadas como hospitais Covid-19, o que significava que aqueles que precisavam acessar outros serviços tinham que ir para instalações médicas mais distantes, embora tivessem apenas duas horas. As consequências foram ainda mais profundas para os residentes rurais, que podiam viver a mais de três horas de distância do ponto de atendimento.
Outro exemplo são os tempos de espera desnecessariamente longos para a simples remoção de pontos de cirurgias menores, pois o dia da consulta não correspondia com a saída. E embora uma consulta médica fosse uma exceção à permissão de sair mediante a apresentação de um comprovante, isso muitas vezes dependia do acesso a dados em telefones celulares ou impressos, com os quais as pessoas nem sempre podiam contar.
O acesso e a prestação de serviços de saúde sexual e reprodutiva também foram afetados. Algumas mulheres relataram preocupação e dificuldade em obter seu período menstrual em uma sexta-feira à noite sem produtos sanitários. Da mesma forma, de acordo com os prestadores de serviços de saúde reprodutiva, eles estavam sobrecarregados nos dias em que as mulheres podiam sair devido às longas filas que se formavam, pois as mulheres frequentemente não conseguiam fazer suas compras dentro das duas horas permitidas. Em alguns casos, o acesso a um medicamento poderia levar cinco horas em três dias (quase todas as seis horas permitidas por semana).
Impactos Interseccionais
Em geral, toda a população foi afetada pela medida, mas certos setores da sociedade, como os indígenas, migrantes, pessoas com deficiência, pessoas transgêneras, crianças, adolescentes e mulheres, sofreram maiores consequências. Portanto, a medida aprofundou as desigualdades que existiam antes da pandemia, apesar das advertências de organizações nacionais e internacionais.
As crianças e adolescentes, por exemplo, não tinham tempo determinado para deixar seus lares. Isto era incompatível com os acordos de visita pré-estabelecidos entre pais separados onde os filhos tinham que se mudar entre dois lares. E no caso de pais solteiros, estes últimos acharam ainda mais difícil o acesso às mercadorias porque não podiam acessá-las com seus filhos, portanto precisavam de mais tempo para mudá-los para outros lugares para seu cuidado.
A medida não levava em conta a desigualdade de gênero pré-existente. Segundo dados da pesquisa do CIEPS de 2019, 70,6% dos cuidadores são mulheres e as duas horas foram insuficientes para realizar tarefas de cuidado. Além disso, as mulheres em empregos essenciais relataram sofrer mais assédio verbal nos dias designados aos homens, pois não havia muitas mulheres nas ruas, o que aumentava o medo e os sentimentos de insegurança.
Além disso, não há nenhuma lei de identidade de gênero no Panamá. Neste contexto, o fato de a mobilidade ser regida pelo sexo biológico na carteira de identidade impôs obstáculos ao movimento de pessoas transgêneras que foram questionadas por policiais, quer tenham saído no dia do sexo em sua carteira de identidade ou por causa de seu gênero.
Lições e desafios futuros
Além de ser uma ferramenta de controle de doenças, a política de segregação de sexo e carteira de identidade teve amplos efeitos colaterais na sociedade panamenha e pode ser vista como uma política pública e social regressiva. Ela exacerbou as desigualdades e produziu novas barreiras ao acesso a serviços essenciais para grupos vulneráveis que, ironicamente, sofreram as consequências dessa medida.
Estes impactos – previsíveis – parecem não ter sido considerados na criação ou desenvolvimento da política, nem durante os seis meses em que ela permaneceu inalterada, apesar das exigências dos grupos que protestaram contra ela. O Panamá deve assegurar a igualdade no desenvolvimento de políticas públicas e antecipar os possíveis impactos negativos que elas possam ter para evitar o aprofundamento das desigualdades dentro da sociedade.
Nelva Araúz Reyes é pesquisadora do Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais. Ela é membro da Rede de Mulheres Cientistas Políticas e Científicas do Panamá. Ela é PhD em Direito pela Universidade Nacional Autônoma do México. Especialista em Direitos Humanos, Gênero e Educação Superior.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto de Bernal Saborio G. (berkuspic) no Foter.com
Autor
Pesquisadora do Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais. Doutora em Direito pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Especialista em Direitos Humanos, Gênero e Educação Superior.