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Quando migrar é crime, ser preso ou morrer pode ser a única opção

A prática de confinar, reter e encarcerar migrantes, tem seu marco preferencial na invasão norte-americana ao Afeganistão.

O ano de 2025 poderá ser marcado pelo desvelamento de práticas necropolíticas no âmbito das migrações.  Não é que elas não existissem até então, mas me refiro a ampliação gerada pela midiatização ou circulação de fatos que eram conhecidos e debatidos por quem direta ou indiretamente vive, acompanha ou estuda a mobilidade: a criminalização das migrações é hoje, mais do que nunca, um fato irremediável. Nesse sentido, destaco duas notícias: 

A primeira: “EDUARDO BOLSONARO PROPÕE QUE IMIGRANTES DO BRASIL SEJAM PRESOS EM EL SALVADOR” (THE INTERCEPT BRASIL, 16 DE MAIO DE 2025), AO TÍTULO, SEGUE O TEXTO: “Eduardo Bolsonaro, do PL de São Paulo, publicou em seu canal no YouTube um vídeo que revela articulações em curso com aliados de Donald Trump para exportar imigrantes brasileiros detidos nos EUA — supostamente ligados a facções criminosas — à mega-prisão de El Salvador.”

    A sugestão do deputado surge na esteira da mimetização da brutalidade representada por Donald Trump. Ser migrante, indocumentado ou não, nos Estados Unidos torna alguém passível de captura, prisão, deportação, e encarceramento sem nenhum processo legal e, portanto, sem nenhum crime comprovado, sejam homens, mulheres ou crianças. O veredito pode ser dado e confirmado se carregarem as seguintes características, preferencialmente, homens, negros ou pardos, vindos de países pobres do Sul global, e, como prova inconteste, carregam no corpo tatuagens, signo vinculado ao pertencimento a facções criminosas. Se a forma como a proposta veiculada provoca indignação, tem igualmente a possibilidade de angariar simpatia de uma audiência conservadora, afinal, tratar-se-iam de pessoa “supostamente ligadas a facções criminosas”, logo, culpados, uma vez que tudo isso ocorre sem nenhum procedimento jurídico que garanta ampla defesa aos migrantes.

    O caso mais gritante e ilustrativo foi noticiado em 14 de abril de 2025: 

    Bukele diz que não vai devolver aos EUA imigrante que foi deportado por engano a El Salvador – Kilmar Abrego Garcia foi detido e deportado mesmo tendo autorização para trabalhar nos EUA. Suprema Corte ordenou que governo americano facilite o retorno do imigrante ao país (G1, 14 de abril de 2025)

    A segunda notícia que destaco: “Departamento de Segurança Interna dos EUA avalia reality show em que imigrantes competem por cidadania americana” (O Globo, 1 de maio de 2025), com atenção para o subtítulo: A proposta já havia sido discutida anteriormente com os governos Obama e Biden. 

      Ainda que negada em seguida, (EUA negam reality show em que imigrantes disputariam cidadania Departamento de Segurança Interna diz que a proposta não foi apoiada e chama de “fake news” reportagem sobre o programa de TV, Poder 360), a notícia escancara que a lógica dos realities show se estende a toda sociedade pela prática da gameficação, ou seja, a aplicação de regras dos jogos a toda experiência de vida e a ideia de competitividade seguida da de mérito que justifica a implementação de uma nova racionalidade, a neoliberal. Isto é, para ser sujeito de direitos é preciso merecer. 

      Importante ressaltar que a lógica do reality show já havia sido apontada por nossas pesquisas que se dedicaram a observar o fenômeno do empreendedorismo sendo apresentado como solução de inclusão sócio laboral para migrantes recém-chegados ao Brasil e com necessidades urgentes de gerar renda para si, para a família e para os entes que ficaram no lugar de origem. Esses treinamentos foram oferecidos em São Paulo na parceira entre uma ONG, o Acnur (ONU) e big techs, como Google, Uber e Meta numa proximidade que evidencia uma outra característica atual no mundo do trabalho: a plataformização. 

      Por sua vez, à prática de confinar, reter, e, por fim, encarcerar migrantes, tem seu marco preferencial na invasão norte-americana ao Afeganistão, em 2001, segundo Michel Agier no texto “Refugiados diante da nova ordem mundial”, de 2006. Nele, o autor aponta o estabelecimento de um padrão entre expulsão/acolhimento e a associação entre guerra e resposta humanitária. Logo, três elementos são necessários para a compreensão do dispositivo humanitário mundial: O primeiro, a existência simultânea de guerras (guerra no Sudão e Ucrânia, por exemplo), violências coletivas (genocídio da população palestina?), distúrbios e terrores (Haiti e RDC, para citar apenas dois) que conduzem as populações civis à morte ou à fuga. 

      Devemos agregar a esta lista, as micro expulsões cotidianas de populações vulneráveis, seja por desastres climáticos e ambientais, vide desastre do rompimento de barragens em Minas Gerais, seja a continuidade das violências a populações indígenas impossibilitadas de viver em seus territórios, donde destacamos a diáspora Warao, entre muitas. 

      Seguido a esse quadro, tem-se como solução a própria intervenção humanitária, cujo modelo instaura ao mesmo tempo o controle e os cuidados: o princípio do care, cure and control aplica-se nos campos de refugiados, que são dispositivos policiais/militares, alimentares e sanitários e principalmente, isolados: esses lugares se situam às margens, afastados dos centros das cidades, cujo principal exemplo no Brasil é a Operação Acolhida, realizada em Roraima. 

      Estima-se que mais de 140 mil venezuelanos tenham passado por este programa, os quais foram alocados em 1068 municípios situados nas cinco regiões brasileiras (OIM, 2024). Na cidade fronteiriça de Pacaraima (RR) e em Boa Vista (RR), a Operação mantém ainda uma diversidade de equipamentos, além dos abrigos, como alojamentos de trânsito, postos de recepção e identificação e de interiorização e triagem. Importante citar que se trata de uma operação cívico-militar, onde a presença do Exército é crucial, tanto na manutenção desses equipamentos como na interiorização dos venezuelanos.

      Ainda que os abrigos da Operação Acolhida não sejam campos de refugiados stricto sensu, aproximações podem ser feitas com esses espaços: ambos são construídos sob a marca da urgência e provisoriedade, governados à margem do Estado, e mais próximos da administração do terceiro setor que se utiliza de bases de dados internacionais, como o Sistema Primes, do Acnur.  Pois, uma das principais características desses complexos são a coleta a partir do uso de tecnologias de mapeamento extração de dados pessoais e físicos dos migrantes, chamado por especialistas de “conjunto biométrico”, numa sinergia de tecnologia de mídia e mobilidade humana estabelecido globalmente. 

      A Operação Acolhida foi objeto de uma série de reportagens realizadas em 2024 pela Agência Pública, em parceria com nossas pesquisas. Nelas temos a quebra do silêncio tanto dos migrantes atendidos como de trabalhadores humanitários que atuaram na Operação, e dentre as denúncias destacamos desde violência de gênero, como presença de facções criminosas nos e ao redor dos abrigos. No entanto, essas denúncias seguem sem resposta nem do Governo federal, nem das agências humanitárias, e a Operação segue sendo apontada como símbolo de sucesso de política pública, ancorada na produção de relatórios e estatísticas quantitativas, onde não se tem espaço para nenhum outro dado que reflita sobre os relatos e das experiências de quem vive e lá trabalha. 

      Por fim destacamos a ideia guia do retorno da relação de inimizade a uma escala global desenvolvida por Achille Mbembe, no ensaio “Políticas da Inimizade” (2020). O autor, que se notabilizou pelo conceito de necropolítica, a partir da análise das formas de vida engendradas na Faixa de Gaza, na Palestina, argumenta, neste ensaio, que na origem de todo campo, há sempre um projeto de partição dos seres humanos. E conclui: ao restringir as oportunidades de encontro e contato tem-se como resultado a maximização da distância, já que retidos, não são vistos, e a banalização da indiferença. 

      Silenciar e banalizar: dois componentes essenciais da histórica relação de poder instaurada pela colonização, destinada no nosso momento atual  a classificar vidas de pessoas que migram de úteis ou inúteis, logo, passíveis de viver na precariedade ou de morrer, simplesmente.  

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      Professora da Univ. Fed. de Pernambuco (UFPE). Coordenadora do Núcleo Migra-Migrações, Mobilidades e Gestão Contemporânea de Populações da UFPE. Doutora pela Escola de Comunicação da UFRJ.

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