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Xenofobia a nordestinos? Não. Pode chamar de racismo

Não há nada de novo debaixo do sol: a cada eleição majoritária, os votos oriundos da região Nordeste são apontados como sendo motivados pelo assistencialismo quando não da simplória e grosseira denominação de burrice ou, recentemente, do analfabetismo. A capa da revista Veja em 2006, afirmava que uma mulher negra e nordestina iria decidir a eleição. O que tem me chamado atenção é a denominação de xenofobia à aversão ao nordestino recorrente em artigos e reportagens circulando pelas redes atualmente.

O racismo é um princípio fundante do projeto de nação brasileiro. O final do século XIX e início do século XX estiveram sob a influência das teorias eugênicas e naturalistas de melhoramento racial, onde se lê a busca pelo ‘embranquecimento’ da população mestiça brasileira, e a adoção de modelos urbanos e de novos parâmetros econômicos. É na busca desses novos modelos urbanos e econômicos que se enraízam o lugar de atraso econômico e social ao nordeste brasileiro.

Neste artigo, quero apontar onde se ancoram noções que repartem o país em divisões de arcaico/moderno, sendo o primeiro representado pela região Nordeste e o segundo focado nas regiões Sudeste e Sul. Sem ignorar as razões que consagram esse viés histórico brasileiro, o foco está em problematizar a validade de algumas representações que envolvem à identidade e alteridade nacionais nos textos de mídia.

Na crítica ao eurocentrismo, os autores Ella Shohat e Robert Stam demonstram por meio da análise das imagens do cinema hollywoodiano, que vivemos inseridos numa lógica que consagra o retrato do branco europeu como a estética normativa e como berço dos valores considerados, no âmago do imaginário ocidental eurocêntrico, símbolos do aprimoramento civilizacional, tais como racionalidade, lógica e cultura letrada formal. Seguindo este pensamento, as sociedades no passado colonizadas continuam hegemonicamente sendo representadas a partir do lugar da alteridade, sendo possível identificar nessas imagens resquícios de racismos, hierarquizações sociais e preconceitos culturais.

Em pesquisa publicada em 2008, analisei as produções midiáticas daquele momento sob a perspectiva crítica elaborada pelos autores acima citados para analisar a produção do cinema brasileiro localizada no eixo entre Rio de Janeiro e São Paulo. Destaquei a permanência de um posicionamento hegemônico que transfere os vícios do olhar construído ao longo de uma hierarquia eurocêntrica sobre as margens e periferias do Brasil.

Foi desta forma que nos acostumamos a associações rápidas: o Nordeste é uma única região compacta, sem distinções socioculturais entre seus estados membros, sem vestígio de urbanidade, descolado dos hábitos de modernidade, habitado por seres caricaturáveis, ora representados sob a chancela do cangaceiro ou do faminto, vítima fácil de políticos e da compra de votos. Essas generalizações não são exclusivas à região Nordeste, se pensarmos em incluir a região Norte, por exemplo.

Recuperações históricas e trabalho comunicacional

O Nordeste brasileiro foi a região que representou o desenvolvimento econômico nos primeiros momentos da colonização do Brasil. Essa produção assentava-se em algumas premissas como a existência de grandes propriedades centrada nas mãos de colonos que se dispunham a vir para a nova terra, a monocultura, o trabalho escravizado, entre outras. Naquele momento, a emigração europeia para os engenhos de açúcar era pouco atrativa, diferente do que começou a ocorrer a partir da ascensão da mineração e, posteriormente, com a economia cafeeira.

A centralização das decisões políticas no Sudeste do país, seguida pelos primeiros passos da industrialização nacional, confirma uma situação de desigualdade regional. A desqualificação de um excedente de mão-de-obra originária principalmente do contingente escravo, imbuída de preconceitos racistas nascidos no pensamento naturalista e embasados pelos discursos oficiais, sugeria a inferioridade racial, não só́ do negro, mas também do mestiço.

É nesse momento também que se consolida no Brasil o ideário de progresso e desenvolvimento, destaque para Euclides da Cunha, e Os Sertões (1902). A obra é apontada por Albuquerque Jr. um marco, pois se inicia com ela a busca pelas nossas origens no sentido do entendimento do que constituiria o nacional e apreensão de um território praticamente inexplorado e uma gente pouco conhecida, o sertão e os sertanejos. Segundo Albuquerque Jr., autor de A Invenção do Nordeste e outras artes, “em Euclides aparece formulado o par de opostos que vai perpassar os discursos sobre nossa nacionalidade: o paulista versus o sertanejo”.

No final do século XIX e início do século XX, sob a influência das teorias eugênicas e naturalistas de melhoramento racial, se lê̂ a busca pelo “embranquecimento” da população mestiça brasileira, pela adoção de modelos urbanos e de novos parâmetros econômicos. Já́ com o início do Estado Novo, tendo à frente o presidente Getúlio Vargas, pode-se perceber a ascensão do discurso de conquista e desbravamento, quando convoca a nação para a marcha rumo ao sertão, para que possamos conquistar a nossa unidade, tanto territorial como racial.  

Assim, entre as décadas 1920 e 1940 crescem os relatos de viagens desbravadoras aos chamados “rincões”. Estes relatos passam a ser disseminados em jornais como O Estado de S. Paulo, por exemplo, e, dessa forma, começa a construção de um “lugar de fala” para o Nordeste, tomado como alteridade nacional, como o pitoresco e o diferente. Além disso, o tema da migração, decorrente do empobrecimento regional, adquire fôlego, e o migrante nordestino, pobre e mestiço em sua maioria, representa um incômodo que se contrapõe notadamente ao imigrante europeu.

É esse o contexto que os debates em torno da identidade nacional são implementados, num claro deslocamento e substituição de modelos, em busca daquilo que, segundo Marilena Chauí́, nos faria plenos, ou desenvolvidos: “a identidade do Brasil, construída na perspectiva do atraso ou do subdesenvolvimento, é dada pelo que lhe falta, pela privação daquelas características que o fariam pleno e completo, isto é, desenvolvido”.

Atraso, progresso e imaginação: o nordestino é um estrangeiro?

No entanto, o mapa eleitoral da região Nordeste atualmente parece ser mais resultado da implementação de políticas públicas emancipatórias do que da permanência do assistencialismo. Bolsa família, programa de cisternas e investimento em educação, nos 3 níveis, transformaram a o contexto nordestino nas últimas décadas e tornaram esta população muito mais atenta, uma vez que têm a realidade e a história como parâmetros para comparação.Logo, me parece inadequada a denominação de Xenofobia ao preconceito ao Nordeste e seus habitantes. Primeiro, pela sua etimologia. Xeno se refere ao estrangeiro. Nordestinos, se acatarmos o neologismo, é uma criação discursiva e imaginária nacional ancorada em hierarquizações raciais e na permanência da dicotomia entre atraso e progresso. Segundo, que, ao associar o termo xenofobia a um grupo populacional nativo, estamos inventando termos novos e esvaziando uma luta fundamental. Localizar o preconceito contra nordestinos como expressão racista é suficiente para conscientização do que nos acomete desde sempre: o racismo e suas derivações.

Autor

Profesora de la Univ. Federal de Pernambuco - UFPE (Brasil). Coordinadora del Núcleo Migra - Migraciones, Movilidades y Gestión Contemporanea de Poblaciones de la UFPE. Doctora por la Escuela de Comunicación de la UFRJ.

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