Vários dias antes de ser anunciado como companheiro de chapa da democrata Kamala Harris, o governador de Minnesota, Tim Walz, ficou famoso por uma frase que proferiu durante uma entrevista no programa Morning da MSNBC: “These guys are just weird” (esses caras são estranhos). Se referia à dupla republicana adversária, formada por Donald Trump e James (JD) Vance. A expressão “weird” acendeu as redes sociais tão rápido quanto um fósforo e revitalizou a campanha democrata, que enfrentava tropeços do partido governista diante de um Trump que parecia imbatível no dia 5 de novembro.
A corrida eleitoral estadunidense tornou-se desconcertante desde que o presidente Joe Biden cedeu sua candidatura em favor de sua vice-presidente, Harris. Inicialmente, não era vista como uma figura forte. Sua gestão insípida e sua posição secundária no debate político pareciam ter prejudicado suas supostas ambições presidenciais.
A ascensão de Harris
Inesperadamente, as pesquisas começaram a dar razão à Convenção Democrata, que nomeou Harris sem fissuras. Não só unificou o partido, mas também atraiu mais recursos para a campanha, incluindo contribuições de pequenos doadores, assim como Barack Obama fez em seu auge.
Desde que Biden abandonou a corrida presidencial em 21 de julho, as pesquisas favorecem Harris diante de Trump. É uma diferença de poucos pontos percentuais, que a margem de erro e a porcentagem de indecisos podem distorcer. No entanto, a 77 dias das eleições, o relevante é que ela pôs os democratas na disputa e incutiu confiança na possibilidade de manter a Casa Branca por mais um mandato. The Washington Post disse que “Harris seria a favorita para ganhar a Casa Branca”.
O caminho é íngreme. Especialmente nos estados que protagonizam os principais campos de batalha: Arizona, Carolina do Norte, Geórgia, Nevada, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin. Entretanto, vencer nesses territórios já não parece um cenário impossível para a chapa democrata.
Chapas polarizadas
A campanha assumiu outro ritmo e aumentou seu apelo. Também expôs ainda mais as divisões culturais e a polarização em torno dos valores fundamentais dos Estados Unidos, acentuada pelas diferenças geracionais. Trump, 78 anos, tornou-se o candidato mais velho, inclusive em termos históricos. Ademais, os companheiros de chapa, Walz e Vance, contribuem à fragmentação em torno de ideias sobre identidades e o significado do próprio país.
É verdade que as divisões já estavam presentes nas duas eleições anteriores. Mas agora as diferenças culturais, sociais e geracionais entre ambos os postulantes são mais acentuadas.
Com as fórmulas presidenciais já na pista, vale a pena revisar seus respectivos perfis eleitorais e ver o que cada um deles representa em uma disputa que, mais uma vez, parece destinada a ser muito acirrada.
Um Trump encorajado
Donald Trump é o mesmo líder político de sempre, mas agora parece se sentir fortalecido. É provável que sua vitória esmagadora nas primárias republicanas e o escasso dano eleitoral causado por seus processos civis e criminais nos tribunais o tenham convencido de que sua pregação populista o permitirá retornar à Casa Branca.
Nem mesmo usou a tentativa de assassinato que sofreu durante um comício como desculpa para moderar sua linguagem, tão loquaz quanto ofensiva. Tampouco para pedir união e promover um ambiente de campanha com lugar para as diferenças, não para o ataque inflamado que envenena a convivência democrática.
Sua voz anti-imigrante soa mais forte do que nunca, pintando os estrangeiros sem documentos como um enxame de malfeitores que acabarão com o país. Propõe terminar o muro na fronteira com o México e iniciar um grande plano de deportação de imigrantes sem documentos, que acusa de virem de prisões e instituições mentais da América Latina, África e Ásia, e até de serem terroristas.
Ademais, em seus atos proselitistas, frequentemente despreza as mudanças climáticas e as organizações multilaterais, como a OTAN, chave para a defesa do Ocidente.
A esse repertório conhecido de suas tiradas, se somam duras críticas à política econômica do democrata Biden. O culpa pelos aumentos de preços que afetou a economia devido às medidas econômicas adotadas durante a pandemia de covid-19.
O arquétipo de Vance
Como candidato republicano à vice-presidência, JD Vance faz sentido. Justamente pela aura vencedora que Trump exibe. Tanto por sua atitude e desempenho proselitista quanto pela forma como ele é percebido pelos seus.
O jovem postulante de 39 anos, senador de Ohio, era um antigo crítico de Trump, convertido agora em sua primeira espada. Mais radical, em termos ideológicos, é quem recebe um legado e assume o compromisso de continuá-lo no futuro.
A vida de Vance é uma história de superação. Nascido em um lar monoparental disfuncional em Ohio, criado por sua avó materna, estudou direito na prestigiosa Universidade de Yale e fez carreira no Silicon Valley, antes de se tornar senador.
Sua fama veio com o livro Hillbilly Elegy, de 2016, um texto autobiográfico sobre sua dura infância no Rust Belt (Cinturão da Ferrugem), que abrange estados do Nordeste e do Meio-Oeste. Essa região, outrora próspera nas décadas de 1970 e 1980, sofreu um declínio devido à desindustrialização, globalização, concorrência estrangeira e automação, o que teve implicações políticas, econômicas e sociais significativas.
O livro descreve o drama da crise dos opioides e do abuso de drogas, que afetou gravemente famílias como a de Vance, branca da classe trabalhadora. De certa forma, testemunha os perdedores da globalização e quem se ressente pelo retrocesso do modelo de desenvolvimento industrial.
Democratas à esquerda
Harris parece uma pessoa diferente desde que se libertou do espartilho da candidatura de Biden. Desde que seu nome começou a ser divulgado em julho como substituta do presidente, seu humor e linguagem esperançosa despertaram o interesse de parte do eleitorado jovem. Parece projetar o futuro com uma candidata de 59 anos que, de uma perspectiva cultural e racial, representa como ninguém a diversidade dos Estados Unidos. Diferente de Trump, Harris foca seu discurso na pluralidade social estadunidense, o que também gera mais simpatia entre os eleitores afro-americanos.
Advogada com uma extensa carreira como promotora antes de ser senadora e vice-presidente, Kamala Harris tem descendência indiana e afro-americana. Sua competência lhe dá confiança em seu confronto com o temido Trump. Também é desafiadora. Sabe aproveitar sua condição de mulher com herança multicultural para desestabilizar Trump, como evidenciado ao ressaltar as vacilações do candidato republicano nos debates presidenciais.
Reconhecer os méritos de Harris não significa que ela não esteja deixando flancos que o partido adversário poderia explorar. Um deles é sua agenda econômica populista. Embora bem-intencionada, implica uma maior intervenção do Estado e um aumento dos gastos públicos, muito mais profundo do que as políticas implementadas por Biden durante a pandemia. Essa proposta pode afastar os eleitores indecisos, mais propensos a não votar, o que prejudicaria os democratas nas urnas.
Liberalismo do Meio-Oeste
Diferente da aposta de Trump em seu companheiro de chapa, Harris optou por uma figura totalmente complementar. Embora tenha nascido em Nebraska, Tim Walz, 60 anos, passou sua carreira em Minnesota. Foi professor de geografia, técnico de futebol americano e tem uma longa carreira na Guarda Nacional, onde chegou ao posto de sargento. Também foi exitoso na política. Foi seis vezes congressista na Câmara de Representantes e duas vezes governador.
No comando de Minnesota, Walz exibiu sua própria versão do liberalismo do Meio-Oeste, em oposição à visão de Vance. Aumentou o orçamento da educação, expandiu o programa de merenda escolar, criou um sistema de licença familiar (que entrará em vigor nos próximos anos), legalizou a maconha, reforçou os controles na compra de armas e fortaleceu o direito ao aborto.
Um ponto fraco que os republicanos poderiam explorar são as críticas que recebeu como governador após a morte de George Floyd em junho de 2020, que morreu devido a um procedimento policial irregular.
A verdade é que, por enquanto, goza de grande popularidade graças a um estilo de comunicação simples e atrativo aos eleitores rurais do Meio-Oeste. Acrescente a isso sua atitude realista de professor. Esse perfil complementa o de Harris, que é frequentemente estigmatizada pelos republicanos como uma doutora em direito que simboliza a elite costeira da Califórnia.
Depois do voto hispânico
Visto as origens e os pontos de vista de cada chapa presidencial, ainda é difícil visualizar qual das duas será mais atraente para os quase 36 milhões de hispânicos aptos a votar.
Pelo que foi observado na campanha até agora, parece que os democratas estão fazendo um esforço maior do que os republicanos para atrair esses eleitores. O Partido Democrata assumiu a liderança na publicidade em espanhol, além de estabelecer um canal de comunicação pelo WhatsApp. Isso faz sentido, pois é a opção que mais precisa mobilizar os eleitores nas urnas. Na eleição de 2020, Biden captou 59% dos votos latinos, com uma participação de só 16,5 milhões, menos da metade dos eleitores aptos a votar.
Os atributos de Harris podem ser mais atraentes aos hispânicos, mesmo em comparação com Biden. Contudo, o discurso de Trump contra a imigração ilegal também é relevante. Pode atrair a força de trabalho hispânica com documentos legais, que teme a concorrência dos indocumentados.
*Texto publicado originalmente em Diálogo Político
Autor
Membro do Conselho Editorial do Diálogo Político. Pesquisador e analista do think tank CERES. Professor de jornalismo na Universidade de Montevidéu.