Co-autor André Rodrigues
No dia 27 de setembro de 2021, Jair Bolsonaro cumpriu mil dias no Poder Executivo. Neste pequeno artigo, não faremos um panorama das ações implementadas em cada setor específico de sua gestão marcada pela crise e pela destruição do meio ambiente, das instituições e das populações.
Destacaremos dois aspectos importantes que são estruturais em sua trajetória: Em primeiro lugar, o miliciano presidente, em segundo, o presidente fake. Na verdade, os dois são parte estrutural da presidência Bolsonaro.
Quem é Jair Bolsonaro?
Bolsonaro é um político antidemocrático. Cresceu a partir de uma representação minúscula, costurada por uma rede de relações que oscilam entre o mundo institucional e o mundo do crime. Em quase 30 anos como legislador, ele só teve um projeto que virou lei. Em contrapartida, ele sempre foi muito zeloso com a ampliação de seu patrimônio e de sua família
Uma marca é o pouco compromisso com o interesse público e o bem-estar social. Bolsonaro construiu sua imagem política como o outsider cujo combate a tudo o que se pareça com democracia significa a afirmação de uma ordem social e autoritária.
Essa postura se apresenta em sua linguagem política sob as bandeiras da “liberdade acima da vida”, da “família tradicional” e de “Deus acima de todos”. Emblemas de uma ordem que não se constrói pela palavra igualitária, mas pela força – das armas, ou do discurso mágico-religioso. Sua construção como político se deu na representação daquilo que fica nas sombras, do ódio. Setores que sempre existiram nas democracias e que dificilmente seriam canalizados por ela.
Por isso, um aspecto trágico para a dinâmica democrática brasileira é a ideologia miliciana que movimenta sua lógica e suas ações. Trata-se da crença de que não há outro instrumento para a construção da ordem a não ser o poder de matar e que qualquer limite legal para este poder deve ser recusado como ameaça dessa ordem.
Esta ideologia pensa a política pela lógica das organizações criminosas. Acordos subterrâneos com setores privados e pilhagem da máquina pública são recorrentes nas suspeitas investigadas pela imprensa e pelos órgãos de controle a respeito do governo Bolsonaro.
Dois episódios expressam este arranjo de modo mais cristalino.
O primeiro foram as manifestações antidemocráticas que Bolsonaro promoveu em 7 de setembro de 2021. Bolsonaro mobilizou manifestações cuja pauta principal era o fechamento do Supremo Tribunal Federal.
A infraestrutura e as ferramentas de mobilização dessas manifestações pró-Bolsonaro foram financiadas por setores do empresariado e do agronegócio que possuem relações obscuras com o presidente, sua família e seus aliados. A escolha do Supremo Tribunal Federal como alvo se motivou porque sua atuação na defesa da democracia colocou limites nos desvios constantes da forma de agir do presidente.
O segundo episódio foi revelado pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal que investiga as ações do Governo Federal sobre a pandemia. As investigações da CPI mostraram que Bolsonaro promoveu uma política de propagação do vírus tendo como estratégia a aposta na imunidade de rebanho e na adoção do chamado “tratamento precoce”, com drogas sem eficácia para o tratamento da Covid-19.
As provas e depoimentos coletados pela CPI revelaram que a política era praticada por um arranjo que envolvia empresas privadas de saúde, o Ministério da Saúde, o Conselho Federal de Medicina e alguns empresários de outros setores que formaram, segundo senadores da Comissão Parlamentar, um “gabinete paralelo” ou “gabinete das sombras”.
Segundo as investigações da CPI, uma empresa privada de saúde que compunha o “gabinete paralelo” promoveu estudos clandestinos em humanos, com práticas eugenistas, para testar a eficácia hidroxicloroquina e outros medicamentos que faziam parte do chamado “kit covid”.
Bolsonaro, sua família e seus cupinchas do empresariado e do crime ocupam Brasília como uma força invasora. Forças antidemocráticas do século XXI nem sempre operam com tanques na rua. Milícias digitais, retórica de destruição, ideologia miliciana, militares nos gabinetes e conluios empresariais sequestram democracias.
Um presidente fake e o retorno do Brasil ao mapa da fome
A postura de Bolsonaro, desde o início, foi fake. Foi um militar que saiu pela porta dos fundos, mas ele se faz de militar bem-sucedido. Fake.
Como legislador sempre foi fake. Ninguém o levava a sério. De concreto, não fez nada além de supostamente roubar migalhas do público, como indicam as denúncias sobre os esquemas de funcionários fantasmas em seu gabinete e nos de seus filhos.
A campanha presidencial foi fake. Sem debate, com muita mídia tentando mascarar a besta incivilizada que era a ponta de lança das elites econômicas e dos militares desejosos de voltar ao poder.
Na trajetória dos 1000 dias, à imagem e semelhança da experiência Trump, a partir do centro do poder se criou uma estrutura de fake news para se manter e orientar seu governo. Desde sua posse, como mostra o levantamento do site Aos Fatos, o presidente falou 3.989 falsidades e distorções, quase quatro mentiras por dia de governo. Um Pinóquio de carne e osso. O presidente pouco falou em alguma política pública que não fosse uma ofensa a algum setor da sociedade ou alguma instituição da democracia.
As fakes news foram mobilizando uma massa que se tornou o segmento da sociedade ao qual ele destinou seu governo. Uns 20% do eleitorado. Assim, o país continental via como o presidente atacava a todos aqueles que não estivessem alinhados a esses setores fanáticos e desinformados propositalmente. As universidades se tornaram desde o início um dos seus alvos prioritários: espaços de diversidade e procura da verdade, constituem, por definição, uma ameaça à mentira como forma de governo.
Na última Assembleia Geral das Nações Unidas, o discurso do presidente foi dirigido para seu setor fanático, esquecendo que o mundo todo estava escutando. Um discurso estruturado em mentira e desinformação escancaradas, exibindo o quanto ele despreza a democracia e a própria sociedade. Assim, longe das obrigações típicas dos presidentes, o atual mandatário tem mais a ver com um administrador de grupo de WhatsApp do que com um estadista liderando o rumo de um dos maiores países do planeta. País este que reverbera de forma profunda na região, onde, anos atrás, marcava os rumos do Cone Sul.
Mas o que não é possível esconder com fake news é a fome (e insegurança alimentar) que atinge mais de 116 milhões de brasileiros. Com uma economia devastada e que só beneficiou aos financistas e latifúndios, o Brasil tem um desempenho desastroso em todas as áreas sociais. Além disso, a taxa de desemprego alcançou 14,6%, atingindo quase 15 milhões de brasileiros. E esta é a única verdade destes mil dias: o Brasil voltou a ser um país no mapa da fome.
André Rodrigues, Cientista político, Doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Foto de Palácio de Planalto de Foter
Autor
Cientista Político. Professor de Ciências Políticas da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Ciência Política pelos Institutos de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ).