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“Sou cordeiro” ou a sacralização da política no Equador

No Equador, a disputa pela Presidência começou após o decreto de dissolução recíproca em 17 de maio de 2023. A medida, emitida pelo Presidente Guillermo Lasso, antecipa as eleições para completar o período vigente do binômio presidencial e dos cargos legislativos.

Para repetir seu sucesso nas eleições municipais, capitalizar o voto subnacional e replicar os resultados nessas eleições nacionais, a organização do ex-presidente Rafael Correa, a principal força política do país, aposta na fidelização eleitoral e, nas entrelinhas, em uma preocupante sacralização política.   

Nessas eleições, a Revolución Ciudadana lançou uma estratégia que busca, de acordo com seus porta-vozes, ressignificar a principal desqualificação atribuída a seus militantes por uma parte da opinião pública e mudá-las em favor de sua campanha. Para isso, utilizam imagens criadas por inteligência artificial, que mostram pequenos cordeiros humanizados como se fossem crianças. Aparentemente, a manobra consiste em apelar para as emoções dos espectadores através da exibição de cordeirinhos em atividades tipicamente humanas, como estudar ou trabalhar. A lei eleitoral do Equador proíbe o uso de crianças em campanhas eleitorais, justamente para evitar a aparição delas em peças de campanha. O que essa manobra publicitária implica?

Os porta-vozes do correísmo explicaram que, após serem rotulados de cordeiros, o uso dessa imagem como emblema de sua campanha é um ato de ressignificação, um processo criativo de apropriação, uma reinvenção identitária. Entretanto, a manobra publicitária, ao que parece, oculta o reconhecimento da sacralização da política como instrumento de ação pública.

Um dos historiadores mais importantes sobre a sacralização da política no mundo é Emilio Gentile, professor emérito da Universidade Sapienza de Roma. Em Political religion: a concept and its critics – a critical survey, Gentile explica que a sacralização da política é um processo que pertence à sociedade moderna, no qual a dimensão política adquire um caráter religioso e se torna a mãe de novos sistemas de crenças e mitos.

A religião política é um fenômeno contemporâneo que representa o ápice da rebelião contra a religião do deus bíblico, que o humanismo iniciou e que tinha o objetivo de sacralizar o homem, mas que terminou na desumanização do homem ao sacralizar o Estado, a nação e a raça, afirma Gentile.

Em The Sacralisation of politics: Definitions, interpretations and reflections on the question of secular religion and totalitarianism, Gentile, em parceria com Robert Mallett, adiciona que a sacralização da política é um aspecto importante dos diferentes totalitarismos durante o período entre guerras. De fato, é geralmente aceito que um dos aspectos mais definidores, se não o mais perigoso, do fenômeno totalitário foi a sacralização da política, também conhecida como religião política, religião secular, misticismo e idolatria política.

Isso ocorre quando, de forma mais ou menos complexa e dogmática, um movimento político concede um status messiânico a uma entidade terrena, que pode ser a pátria, o Estado, a humanidade, a raça, o proletariado ou a revolução, e a converte em um princípio inquestionável da existência coletiva, enquanto a considera como a principal fonte de valores para o comportamento individual e coletivo.

Gentile e Mallett afirmam que as ideologias revolucionárias, a política messiânica, a teologia e as teorias escatológicas seculares, como o hegelismo, o marxismo e as novas religiões, contribuíram significativamente para a sacralização da política durante o século XIX. A partir desse momento, a política foi atormentada por profetas, apóstolos e mártires dessas novas religiões seculares que elevaram a humanidade, a História, a nação, a revolução e a sociedade aos altares do absurdo.  

Ademais, Gentile afirma em Fascism as a political religion que, na secularização contemporânea do Estado, não há separação definitiva entre religião e política. A “sacralização da política” foi notoriamente influenciada pelo nazismo, o fascismo e o nacionalismo romântico. A democracia, o socialismo e o comunismo também contribuíram para o surgimento de novos cultos seculares, embora sua tendência tenha atingido seu auge durante os movimentos totalitários do século XX.

Isso é o mais sugestivo da manobra publicitária de apropriação do cordeiro como símbolo de campanha: por trás do suposto pertencimento a um rebanho está o reconhecimento da presença dominante de um ator que figura como pastor e que, acima da organização política, há um líder com qualidades messiânicas.

Além de seus aspectos demagógicos mais gerais, o “culto ao líder” surgiu dentro dos limites da “religião fascista” e, como tal, foi o resultado dela. Assim como a figura carismática do papa não pode ser extrapolada da Igreja Católica, a figura carismática do líder fascista está indissoluvelmente ligada a toda a estrutura de seu universo simbólico, diz Gentile.  

Em Fascism, totalitarianism and political religion: definitions and critical reflections on criticism of an interpretation, Gentile cataloga o fascismo como um fenômeno moderno, nacionalista, revolucionário, antiliberal e antimarxista que foi elaborado com base em uma redefinição inovadora dos conceitos de totalitarismo e religião política.

Nas palavras do professor da Sapienza, “o fascismo não tinha uma individualidade histórica própria do mesmo modo que o liberalismo, a democracia, o socialismo ou o comunismo. Em vez disso, era uma espécie de epifenômeno anti-histórico e antimoderno, sem cultura ou ideologia”. E acrescenta que, em toda parte, o fascismo foi um movimento para “subjugar e desviar as massas inocentes e recalcitrantes”.

Os elementos nacionalistas, revolucionários, iliberais e antiprogressistas situam algumas das organizações personalistas latino-americanas na antítese do progressismo. O mais preocupante é que ele segue fielmente o diagnóstico de Gentile como um fenômeno antimoderno, desprovido de substância ideológica.

Embora quase nenhum dos fenômenos personalistas latino-americanos atinja as proporções conceituais do fascismo, é inegável que a mescla de nacionalismo, personalismo e populismo tem tons totalitários preocupantemente.

Autor

Politólogo y abogado. Profesor de la Universidad de las Américas (Quito). Master en Ciencia Política y Gobierno por FLACSO-Ecuador.

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