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Um Estado que propaga desinformação em pandemia

A Venezuela é considerada um dos cinco países do mundo onde o Estado desenvolveu maiores capacidades para implementar operações de propaganda on-line. O Estado venezuelano vem realizando operações de cyberbullying usando trolls desde pelo menos 2009 e operações automatizadas para impulsionar as tendências de opinião desde 2010. A pandemia da COVID-19 tem sido outro território para operações de guerra de informação executadas pelo aparelho de comunicação pró-governamental venezuelano.

Sob o estado de alarme devido à pandemia da COVID-19, o Estado venezuelano continuou suas práticas sistemáticas de violação dos direitos civis e políticos dos cidadãos, neste caso do pessoal de saúde, doentes, migrantes e jornalistas. Médicos e enfermeiros foram vítimas de assédio por denunciarem o colapso do sistema de saúde pública, inclusive em comunicações privadas como seus status do WhatsApp ou notas de voz originalmente destinadas a amigos, que se tornaram virais.

Um dos casos emblemáticos é a prisão de Julio Molina, um médico de 72 anos de idade, acusado de causar pânico, causar estresse na comunidade e incitar o ódio. Esta detenção arbitrária foi realizada alegando a lei inconstitucional contra o ódio, depois que Molina denunciou que o Hospital Núñez Tovar, no leste do país, não tinha insumos para enfrentar a emergência.

Embora pareça que as campanhas destinadas a promover o rompimento de informações só dizem respeito ao ecossistema digital, no contexto venezuelano tem havido evidências da existência de estratégias de desordens de informações utilizando a mídia tradicional, pelo menos desde 2002. No âmbito das desordens de informação associadas à COVID-19, a televisão de sinal aberto, especificamente os canais sob o controle do Estado venezuelano, tem sido frequentemente utilizados para a introdução de conteúdo enganoso, manipulado ou propagandístico.

O segundo canal de propagação deste tipo de conteúdo do partido governante foi o Twitter, utilizando as redes oficiais da administração pública; o terceiro canal foi o WhatsApp, especialmente com o uso de notas de voz que simulavam vazamentos; e a quarta via foi o canal do governo no Telegrama, através do qual são enviadas diariamente ordens operacionais para posicionar as etiquetas oficiais. Finalmente, as etiquetas oficiais são suportadas por dezenas de milhares de usuários do Sistema Pátria que são ativados como tuiteiros patrióticos para se qualificar para os bônus de centavos de dólar que são distribuídos entre aqueles que usam as etiquetas do dia.

No Twitter, observamos um padrão de introdução de operações de desinformação através de comentários em respostas a tweets de jornalistas populares, usando contas não autênticas. Também observamos que as contas não autênticas geralmente usam pseudônimos e suas imagens de perfil muitas vezes parecem ser geradas por inteligência artificial. Também se observam indícios do uso de fazendas de trolls e operações de astroturfing, que simulam opiniões orgânicas de cidadãos ou ativistas de base, mas na realidade respondem a linhas de propaganda destinadas a apresentar a gestão oficial da epidemia como eficiente.

Tem havido operações de desinformação que começam com rumores ou vazamentos no WhatsApp, geram debates polarizados no Twitter e terminam em negações nos canais oficiais de comunicação, como foi o caso das notícias tendenciosas da instalação de fornos crematórios no estacionamento do centro de entretenimento de El Poliedro, em Caracas.

Entre os distúrbios informativos mais importantes registrados na Venezuela no ano de pandemia destaca-se a estigmatização do retorno de migrantes venezuelanos como “armas biológicas” contra o país. Tanto Nicolás Maduro como outros funcionários de sua administração chegaram ao ponto de dizer em transmissões oficiais de TV que os migrantes retornados são “armas biológicas” introduzidas na Venezuela pelo presidente da Colômbia, Iván Duque.

Em 20 de maio de 2021, Nicolás Maduro acusou publicamente o governo colombiano de “contaminar” a Venezuela com cargas de ônibus de pessoas infectadas. A declaração de Maduro marcou o início de uma política governamental de estigmatização de migrantes. As ordens oficiais eram para denunciar através de e-mails as pessoas que haviam retornado, marcar as casas suspeitas de ter migrantes e concentrar migrantes em centros de confinamento. Além disso, foi mantido um incriminatório discurso oficial de bioterrorismo contra a Colômbia e o Brasil, países acusados de infiltrar o vírus através de suas fronteiras com a Venezuela.

A avaliação negativa ou positiva das vacinas de acordo com o local de origem de seu desenvolvimento, e não de acordo com critérios científicos, tem sido outra constante nos últimos seis meses. A chegada ao país do primeiro lote de vacinas russas Sputnik foi comemorada com o “hashtag do dia” #SputnikVEnVenezuela, difundido pelo aparelho oficial de comunicações, incluindo os principais líderes do PSUV, estruturas militares como as Zonas Operacionais de Defesa Integral (ZODI) e as Regiões Estratégicas de Defesa Integral (REDI).

Por outro lado, no final de março de 2021, o aparato de mídia pró-governamental implantou uma campanha de informação tendenciosa para justificar sua recusa em permitir a entrada na Venezuela da vacina AztraSeneca, que a Assembleia Nacional liderada pelas forças pró-democratização havia conseguido obter através do mecanismo COVAX da Organização Pan-Americana da Saúde.

O aparelho oficial de comunicação, com o próprio Nicolás Maduro como porta-voz, também tem se dedicado a difundir conteúdo pseudocientífico, em um país com baixo acesso a serviços de diagnóstico e tratamento para a COVID-19. No primeiro ciclo de contágio na Venezuela, através dos canais estatais, eles promoveram intensivamente o uso de uma mistura caseira com a planta capim-limão ou erva cidreira como ingrediente principal que supostamente curaria a COVID-19. Na rádio e televisão nacional, Nicolás Maduro promoveu a fórmula de Sirio Quintero, composta de seis ingredientes: erva cidreira, gengibre, pimenta preta, casca de limão, suco de limão, mel e sabugueiro, como cura para o coronavírus.

No início de 2021, o aparelho oficial de comunicação lançou como cura milagrosa para a COVID-19 a marca comercial Carvativir, gotas cujo princípio ativo é o isotimol, amplamente utilizado como desinfetante bucal e em medicamentos antiparasitários. Para o lançamento comercial do Carvativir foram combinadas estratégias de legitimação da pseudociência (com o uso de um artigo científico falso publicado na plataforma de compartilhamento de documentos Scribd), apelação para os mercados naturais de saúde e apelação para as crenças religiosas (denominação secundária “gotas milagrosas de José Gregorio Hernández”, em referência ao médico venezuelano em processo de canonização pela Igreja Católica).

*A maior parte dos dados referidos neste artigo provém do estudo: Desórdenes informativos propagados en Venezuela, vía WhatsApp y redes sociales, en medio de la pandemia de COVID-19,( https://covid.infodesorden.org/) de Puyosa; Madriz; Alvarado; Andueza; Córdova; & Azpúrua (2021). 

Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

Autor

Pesquisadora em comunicação política. Membro do Inst. de Pesquisa en Comunicação da Univ. Central da Venezuela. Presidente da Seção Estudos Venezuelanos de LASA (2018-2020). Professora visitante na Brown University. Doutora pela Univ. de Michigan.

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