Uma eleição verdadeiramente histórica foi realizada neste domingo. Os chilenos decidiram, de maneira contundente, através de um plebiscito, que o país terá uma nova Constituição. O adjetivo nova não deve ser tratado levianamente. Não estamos diante de uma reforma constitucional, mas da possibilidade de escrever um texto do zero, a partir de uma folha de papel em branco. A eleição também teve como propósito definir o mecanismo a partir do qual a nova Constituição será redigida, ou seja, através de uma convenção constitucional composta por 155 membros que serão eleitos por votação direta em 11 de abril de 2021.
A convenção constitucional terá paridade de gênero e prevê cotas especiais para os membros dos povos originários. Este órgão deliberativo redigirá a nova Constituição em um prazo de nove meses, que poderá ser prorrogado por até mais três meses. O texto deve ser aprovado por pelo menos 2/3 de seus membros e posteriormente ratificado por um plebiscito de saída. Se dentro do período estabelecido os participantes não chegarem a um acordo, a atual Constituição aprovada em 1980, permanecerá em vigor.
as principais forças políticas do país concordaram com um “Acordo de Paz Social” cujo eixo central contemplava um plebiscito constitucional.
Este plebiscito é extraordinário por causa do contexto no qual se originou. Em outubro de 2019, o Chile experimentou uma onda de protestos em massa, majoritariamente pacíficos, mas ocasionalmente violentos, que se estenderam por mais de dois meses. Em meio a uma explosão social de proporções bíblicas, que o presidente Sebastián Piñera disse que o governo não previa a chegada e claramente não sabia como desativar, as principais forças políticas do país concordaram com um “Acordo de Paz Social” cujo eixo central contemplava um plebiscito constitucional. Assim, a nova Constituição se converteu em uma estratégia política para desarticular um conflito social que de outro modo não previa um resultado auspicioso.
Mas será que a demanda por uma nova constituição foi a principal demanda dos cidadãos mobilizados? Certamente que não. Os cidadãos e cidadãs mobilizados não se articularam em torno de um líder, grupo ou movimento, nem clamaram por uma reforma específica. Pelo contrário, durante a explosão social, o espaço público foi inundado por múltiplas demandas e reivindicações heterogêneas, tais como melhor acesso à saúde, salários dignos, educação de qualidade, o fim das companhias de seguro de pensão e a redução das desigualdades em torno de categorias sócioestruturais, tais como classe, gênero e etnia, entre outras.
Entretanto, para uma boa parte dos cidadãos e das elites políticas, a Constituição de 1980 havia se tornado uma verdadeira pedra no sapato, tanto simbolicamente quanto instrumentalmente. Simbolicamente, a Constituição atual foi escrita em meio a uma ditadura e sem a participação dos cidadãos, algo que tem levado muitos a considerar que se trata de um texto com pecado concebido. Dado que o país está enfrentando uma profunda crise de legitimidade, expressa em baixos níveis de identificação partidária, confiança nas instituições e participação política, contar com uma nova Constituição democrática, produto da deliberação, parece oportuno e necessário. Instrumentalmente, a Constituição foi projetada para manter o status quo, através de várias regras que impedem a mudança, e não para processar institucionalmente as demandas acumuladas e o descontentamento. Por isso, alguns consideram que para sair da crise é imprescindível ter uma nova Constituição que não funcione como um freio à mudança.
O que resta saber é se uma nova constituição resolverá a profunda crise de legitimidade em que o Chile se encontra.
O que resta saber é se uma nova constituição resolverá a profunda crise de legitimidade em que o Chile se encontra. Não há dúvida de que as crises políticas muitas vezes oferecem oportunidades para refletir sobre o tipo de país que os cidadãos desejam construir e para adotar as transformações necessárias que, de outra forma, seriam difíceis de alcançar. Também sabemos que quando as pessoas entendem os processos de tomada de decisão como legítimos, têm maior probabilidade de aceitar seus resultados, mesmo quando são adversos a elas. Estas, por si só, são razões poderosas para se esperar por uma nova Constituição.
No entanto, este processo apresenta enormes desafios na gestão das crescentes expectativas. Uma boa parte dos cidadãos poderia estar esperando que uma nova carta magna traga consigo uma solução para muitos dos problemas e demandas que surgiram desde a explosão social. A disponibilidade de medicamentos, a desigualdade socioeconômica, a discriminação de gênero, os abusos das empresas privadas e os níveis de emprego não serão resolvidos imediatamente ou facilmente se um novo texto constitucional for aprovado.
O contexto também não ajuda. A COVID-19 atingiu duramente o Chile, com mais de 500.000 casos já acumulados. A economia também foi atingida pela pandemia, com níveis de desemprego em torno de 13% e uma projeção de -6,3% para este ano, segundo o Banco Mundial. As pesquisas de opinião mostram que o descontentamento generalizado ainda prevalece.
É inegável que ter uma nova constituição é um passo necessário para resolver a crise de legitimidade em que o país se encontra. No entanto, isto não será suficiente. Se a classe política não estiver à altura das circunstâncias, se a gestão das expectativas dos cidadãos for deficiente e se não forem construídos amplos acordos sociopolíticos transversais em torno de um projeto comum, será difícil olhar para o futuro com otimismo.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto de pslachevsky em Foter.com / CC BY-NC-SA
Autor
Decana da Faculdade de Ciências Sociais e História da Univ. Diego Portales (Chile). Doutora em Ciência Política pela Univ. de Notre Dame (E.U.A.). Foi professora visitante nas universidades de Harvard, Leiden y Oxford e no Kellogg Institute for International Studies.