Após 16 anos de governo de Angela Merkel, a Alemanha tem agora um novo chanceler federal. O que isso significa para as relações com a América Latina?
Como ex-prefeito de Hamburgo, uma cidade com uma longa tradição comercial com a América Latina, o novo chanceler federal Olaf Scholz conhece a importância da região para a economia alemã. Durante seu tempo como prefeito, cultivou ativamente contatos com a América Latina. No entanto, ela não terá uma alta prioridade na política externa alemã. Haverá muita continuidade. Mas também haverá novas ênfases.
Como chanceler, Scholz lidera uma coalizão heterogênea que inclui o Partido Socialdemocrata (SPD), o Partido Democrático Livre (FDP) e o Partido Verde (Bündnis 90 / Die Grünen). Nos manifestos eleitorais dos três partidos governantes, o Partido Verde tem dado o maior espaço à América Latina. Segundo o manifesto, a sustentabilidade ecológica, a participação democrática, a paz e a igualdade de gênero estarão no centro da cooperação com os Estados e sociedades civis da América Latina.
O FDP é um partido liberal clássico. Em seu manifesto eleitoral, pede que a Alemanha se converta em um defensor do livre comércio baseado em regras e que promova novos acordos de livre comércio. A única menção à América Latina refere-se à rápida assinatura e ratificação do acordo entre UE e Mercosul. O manifesto eleitoral do SPD também menciona o acordo UE-Mercosul, mas, assim como o Partido Verde, condiciona a assinatura ao cumprimento de vários requisitos.
Na Alemanha, os resultados das negociações da coalizão são registrados em um acordo de coalizão. Segundo este acordo, a política externa do novo governo será baseada em valores e terá um foco europeu mais forte. Trabalhar pela paz, a liberdade, os direitos humanos, a democracia, o estado de direito e a sustentabilidade são as pedras angulares da política externa.
A coalizão do governo expressa a intenção de fortalecer “a comunidade de valores” com as democracias da América Latina e do Caribe. Promete ampliar “seu compromisso de fortalecer as sociedades da região em sua luta contra o populismo, os movimentos autoritários e as ditaduras”. Ela apoiará os processos de reconciliação e paz no continente. Além disso, o governo alemão vê os estados da região “como parceiros centrais para a cooperação multilateral, entre outras coisas, na preservação da biodiversidade, na luta contra a crise climática e para relações econômicas sustentáveis”.
A política externa depende não só dos programas governamentais, mas também das pessoas responsáveis. Em muitos países da América Latina, as mulheres têm sido nomeadas Ministras das Relações Exteriores, enquanto na Alemanha, Annalena Baerbock é a primeira mulher a dirigir o Ministério das Relações Exteriores. Esta é a segunda vez que o Partido Verde nomeia o Ministro dessa pasta, e o primeiro, Joschka Fischer (1998-2005), foi altamente respeitado tanto na Alemanha como no exterior.
A nova ministra das relações exteriores enfrenta altas expectativas e certo ceticismo sobre como uma política externa mais orientada em valores pode fazer frente a realidades geopolíticas adversas. O acordo de coalizão contém muitas ideias inovadoras, tais como uma política externa feminista para fortalecer os direitos, recursos e representação das mulheres e meninas em todo o mundo e promover a diversidade social. Além disso, advoga por “uma política climática externa consequente”, que se reflete na posição do novo governo sobre o acordo do Mercosul.
A ratificação do acordo UE-Mercosul
Os requisitos para a assinatura e ratificação do acordo UE-Mercosul são muito exigentes. A coalizão condiciona seu apoio ao acordo à disposição dos países sócios de assumir previamente obrigações legalmente vinculativas, viáveis e verificáveis sobre a proteção ambiental, social e dos direitos humanos. Além disso, eles devem celebrar acordos adicionais aplicáveis na prática sobre a proteção e manutenção das áreas florestais existentes.
Estas demandas exigentes são bem-intencionadas e apontam na direção correta, mas podem falhar em seu objetivo e não conduzir aos resultados desejados. Deve-se evitar, em todo caso, a dar a impressão de que a Alemanha está subindo em um pedestal político-moral e, a partir daí, dando instruções aos países do Mercosul.
Demasiado idealismo nas relações com a América Latina pode provocar resultados adversos. Em sua posição sobre o acordo UE-Mercosul, o novo governo deve estabelecer um equilíbrio entre os valores e interesses econômicos e geopolíticos. Segundo o acordo de coalizão, o novo governo quer aumentar a soberania estratégica da Europa em um sistema multilateral em estreita cooperação com os Estados que compartilham seus valores democráticos.
Mas a UE, e certamente a Alemanha por si só, não são os parceiros comerciais mais importantes da América Latina e seu peso continuará diminuindo durante esta década. Se a UE não firmar o acordo com o Mercosul em breve, este acordo eventualmente se tornará irrelevante; especialmente porque em sua forma atual contém muito mais vantagens para a UE do que para os membros do Mercosul.
A nova ministra das Relações Exteriores, Baerbock, também defende uma posição mais dura em relação à China. Isto acarreta o risco de alinhar demasiadamente a Alemanha com a política estadunidense, e não se encaixa aos interesses da maioria dos governos latino-americanos que tentam não se envolver no conflito entre China e Estados Unidos, especialmente porque a China é um parceiro comercial importante para muitos países.
No caso de uma política mais conflituosa com a China, a Alemanha não pode necessariamente contar com o apoio da América Latina, mesmo que a América Latina queira a Europa e a Alemanha como parceiros e como contrapeso à crescente influência econômica da China na América Latina.
Resta ver como se pode conciliar uma política exterior com orientação mais baseada em valores com a orientação mais pragmática da era Merkel, que também caracteriza a abordagem do novo chanceler Olaf Scholz.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Autor
Pesquisador associado do German Institute for Gobal and Area Studies - GIGA (Hamburgo, Alemanha) e do German Council on Foreign Relations (DGAP). Foi Diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos e Vicepresidente do GIGA.