Há uma máxima muito difundida entre jornalistas esportivos e treinadores: “equipe que ganha, não se toca”. A ideia por trás dessa frase é muito básica: para que modificar um mesmo grupo de jogadores ou uma tática se com ela já obtiveram bons resultados? A ideia parece tão razoável que o mundo da política também quer aplicá-la.
Em sua terceira experiência presidencial, Lula adotou esse lema como um mantra. E, pelo menos em termos de política externa, começou a reconstruir o caminho de seus mandatos anteriores. Embora a equipe técnica tenha mudado (porque Marco Aurélio Garcia não está mais com ele), a estratégia continua sendo a mesma promovida pelo ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. Os resultados dessa continuidade não demoraram a aparecer, com o Brasil retomando seu posicionamento geopolítico em torno do bloco BRICS, do qual integra junto a Rússia, Índia, China e África do Sul.
Nova estratégia?
O que chama a atenção na estratégia brasileira é o fato de ela voltar a confirmar jogadores que não trouxeram resultados muito bons na temporada anterior. De fato, Lula nomeou Dilma Rousseff para chefiar o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, com sede em Xangai, na China, para onde o líder do Partido dos Trabalhadores viajou às pressas antes de completar seus 100 dias como presidente.
Lula está repetindo o esquema de jogo. Por enquanto, o legado de autoritarismo que a esquerda do século XXI disseminou na América Latina não parece ser motivo suficiente para que o político brasileiro ofereça qualquer tipo de autocrítica a esse respeito. A mensagem é clara: se Lula não muda, é porque avalia que sua estratégia passada não foi tão ruim. E nisso possivelmente não está equivocado, já que aqueles foram os anos dourados de sua liderança e prestígio regional.
A nova temporada da Unasul
Enquanto reforça os vínculos com a China, e no contexto das infelizes declarações sobre a Rússia e a guerra com a Ucrânia, Lula recuperou outra peça da antiga equipe com a qual gerenciou sua política externa entre 2003 e 2010: a União das Nações Sul-Americanas, mais conhecida por suas siglas Unasul.
Esta organização desempenhou um papel fundamental na política petista (PT) da época, o que pode ser ilustrado pela metáfora do “bombeiro piromaníaco”. Ou seja, ao mesmo tempo em que incentivava e protegia Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales, se apresentava a nível global como a única que poderia contê-los nas linhas vermelhas que preocupavam as grandes ligas internacionais. Para os Estados Unidos, isso foi suficiente em uma região que não tem estado na vanguarda de seu interesse geopolítico há algum tempo. Por outro lado, para os cidadãos latino-americanos que sofreram o esplendor dos líderes bolivarianos, os resultados foram desastrosos em termos de deterioração democrática, qualidade de vida e vigência dos direitos humanos.
Apesar disso, um dos pontos fortes que legitimou a existência da Unasul foi a bateria de conferências, artigos e livros elaborados por especialistas, internacionalistas e outros acadêmicos. O soft power intelectual legitimou a Unasul, atribuindo-lhe um êxito que nunca se materializou nem se observou na realidade. Isso não é surpreendente, já que a esquerda autoritária demonstrou mais habilidade para melhorar a qualidade de vida de seus intelectuais e organizações de especialistas do que para melhorar a do restante da população.
Unasul: êxito ou fracasso?
O retorno da Unasul foi recebido com entusiasmo pelos antigos acionistas que continuaram integrando a organização: Bolívia, Guiana, Suriname e Venezuela. Mas também foi aclamada pelos novos líderes da esquerda regional: Gustavo Petro e Gabriel Boric. Também pelo peronista Alberto Fernández, que também enxerga com interesse a oportunidade laboral que se abre na secretaria geral, reservada a um ex-presidente, já que, no final de 2023, perderá seu cargo atual.
Ao contrário de outros espaços latino-americanos, a Unasul não pretende funcionar como um organismo de integração regional clássico, mas sim um que privilegia a cooperação política, onde as coincidências ideológicas desempenham um papel fundamental. A Unasul é parte central de uma estratégia que é sustentada por uma rede de organizações internacionais e transnacionais que assumem a forma de constantes reuniões, encontros e cúpulas.
Esses eventos são de diferentes níveis: governamentais e não governamentais, presidenciais, ministeriais, de ex-presidentes, partidários, de especialistas, ideológicos, bilaterais ou multilaterais. Da Unesco ao Foro de São Paulo, passando pela Celac às assembleias do Clacso. De fato, o anúncio do retorno da Argentina à Unasul foi feito no marco de uma reunião do Grupo de Puebla e do Conselho Latino-Americano de Justiça e Democracia.
Estes espaços coletivos – e suas reuniões permanentes – contribuem para a difusão de um ativo nacionalismo paternalista, muito afeito ao autoritarismo iliberal latino-americano. Além disso, mostra aos líderes em permanente atividade e ajuda a consolidar seus discursos e projetos nacionais. Sobretudo, permite manter sob controle, e até mesmo isolar, aqueles que, nesses níveis, não fazem parte do coletivo da esquerda populista ou que ousam desafiá-lo.
O papel da Unasul 2.0
A Unasul adquire um lugar importante entre as redes de cooperação transnacional por dois outros motivos que foram pouco destacados até agora. Primeiro, porque ela tem um histórico de intervenção direta em assuntos nacionais para socorrer seus integrantes em problemas. Isso foi visto na legitimação das fraudulentas eleições venezuelanas de 2013, na amplificação de crises menores no Equador para beneficiar o projeto autoritário de Rafael Correa, na participação na disputa do governo de Santa Cruz de la Sierra com Evo Morales ou no conflito da Colômbia com as FARC, entre outros.
Em segundo lugar, porque é o primeiro dos espaços internacionais latino-americanos a destacar a questão da defesa e segurança regional por meio de seu Conselho de Defesa Sul-Americano. Nenhuma outra organização deu a mesma ênfase na condição ideológica de seus presidentes e na coordenação das forças armadas que eles lideram.
Lula mantém a formação de sua equipe e as estratégias implementadas desde 2003, mas o mundo de hoje mudou radicalmente desde o início do século XXI. A possibilidade de abrir as portas da Unasul – como já aconteceu com a Celac – para a China e a Rússia os habilitará a jogar em um campo até então vedado. Assim, poderão intervir na política nacional dos países sul-americanos com inédita legitimidade.
Apesar de tanto entusiasmo construído artificialmente, a Unasul deixou de existir sem muito alarde quando alguns de seus países membros decidiram suspender seu financiamento. No final, não havia muito mais do que uma narrativa bem elaborada, mas é exatamente isso que permite que ela ressurja hoje e se torne uma ameaça em potencial à liberdade da região. A Unasul é um gigante com pés de barro.
*Texto publicado originalmente no Diálogo Político
Autor
Coordenador do Grupo de Estudos da Ásia e América Latina do Instituto de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos da Universidade de Buenos Aires. Doutor em Processos Políticos Contemporâneos pela Universidade de Salamanca.