O primeiro turno das eleições nacionais (27 de outubro) abriu caminho para o segundo turno e revelou a existência de dois blocos políticos bem definidos lutando pelo futuro de um país que parece rejeitar as polarizações extremas e a violência política.
Com uma participação superior a 90%, os uruguaios reafirmaram sua tradição democrática. Não houve relatos de incidentes ou atos de violência durante o dia, o que mais uma vez consolidou a imagem de estabilidade política que caracteriza o país.
Entretanto, o aspecto mais interessante desse ciclo eleitoral não são as figuras disputando – dois candidatos de perfil moderado e longa trajetória pública – mas o que cada um representa em termos de modelos de gestão e visão do país.
O Uruguai, fiel ao seu pragmatismo, voltou a se dividir entre dois blocos eleitoralmente sólidos: de um lado, a Frente Ampla, que reúne a esquerda sob uma bandeira unificada; do outro, a Coalizão Republicana, um conglomerado de partidos de centro-direita que busca continuar o rumo traçado pelo governo de Luis Lacalle Pou.
Fórmulas do serviço público
A votação de 24 de novembro não será uma disputa entre um candidato outsider e outro do sistema, mas entre dois homens com ampla experiência política. Tanto Orsi quanto Delgado percorreram um longo caminho em seus respectivos partidos. Orsi, como intendente do departamento de Canelones, consolidou-se como uma figura de destaque na FA. Delgado, por sua vez, foi senador e ocupou o cargo de Secretário da Presidência no governo de Lacalle Pou, tornando-se um de seus homens de maior confiança.
A campanha foi relativamente tranquila, sem intercorrências, e ambos os candidatos mantiveram um perfil discreto na mídia. Entretanto, o verdadeiro pano de fundo dessa eleição vai além de suas personalidades. O que está em jogo é a continuidade ou a mudança do modelo de gestão que prevaleceu nos últimos cinco anos. Os cidadãos deverão decidir se ratificam o rumo que o país seguiu com a CR ou se optam por um retorno ao governo da FA, que esteve no poder entre 2005 e 2020.
Coalizão Republicana
No primeiro turno, a CR obteve 47,3% dos votos, enquanto a FA obteve 43,9%. Isso marca uma recuperação de mais de 4% para a esquerda em comparação com as eleições de 2019, mas não foi suficiente para alcançar a maioria que eles esperavam. Por outro lado, os resultados evidenciam um realinhamento dentro da Coalizão Republicana, pois o Cabildo Abierto, um de seus partidos aliados, perdeu seus três assentos no Senado, enquanto o Partido Colorado recuperou dois.
Essa mudança na configuração de forças dentro da CR tem consequências importantes para a forma de negociar e a liderança de Delgado, que deverá administrar novas dinâmicas se conseguir ganhar a presidência: seu principal interlocutor serão os colorados.
Apesar desses ajustes internos não menores na CR, Delgado ficou bem posicionado para o segundo turno, com apoio significativo graças à administração de Lacalle Pou, que mantém uma popularidade superior a 50%.
Enquanto isso, a votação de Gustavo Salle, um candidato anti-sistema que criou o partido Identidad Soberana, caracterizado por opor-se abertamente à agenda 2030 e às vacinas da Covid-19, gerou surpresa. Seu desempenho lhe rendeu dois assentos na Câmara dos Deputados, o que poderia complicar a aprovação de leis futuras. Salle já anunciou que anulará o voto no segundo turno, o que reforça a incerteza sobre os resultados finais.
Pouco clima de mudanças
Nas eleições gerais do Uruguai, também ocorreram dois plebiscitos. Um contra a reforma da previdência social do governo de Lacalle Pou e o outro para aprovar a possibilidade de buscas domiciliares noturnas sob ordem de um juiz. Ambas não atingiram 50% para serem aprovadas. Além dos números, a retumbante rejeição do plebiscito sobre a revogação do atual sistema de pensões foi um indicador claro de para onde a maioria do país parece estar se inclinando. O revés, com mais de 60% dos votos contra a revogação promovida pela central sindical e pelos setores mais radicais da esquerda, reforça a ideia de que os uruguaios preferem manter a estabilidade do rumo atual.
Esse plebiscito representou uma clara vitória para Lacalle Pou, que defendeu uma reforma impopular, mas necessária, que incluía, entre outras coisas, o aumento da idade de aposentadoria de 60 para 65 anos.
A esquerda
Apesar do partido governista, com Delgado à frente, ter saído bem do primeiro turno, isso não é nenhuma garantia de vitória em novembro. A FA tem uma base eleitoral sólida, e seu líder, Yamandú Orsi, tem o apoio explícito do ex-presidente e líder do Movimento de Participação Popular, José “Pepe” Mujica, que continua sendo uma figura influente na política uruguaia.
A FA garantiu 16 assentos no Senado. Essa maioria simples lhe dá poder de veto sobre decisões importantes, como a nomeação de embaixadores ou a promoção de generais do exército, o que não é pouca coisa.
Ambos os blocos enfrentam um grande desafio no segundo turno: mobilizar os eleitores do outro bloco ou aqueles que votaram em branco ou anularam o voto no primeiro turno. Esses eleitores serão a chave para definir o resultado em novembro.
Por outro lado, Delgado também tem a vantagem de representar um governo que, em geral, é bem avaliado pela maioria da opinião pública. Também a seu favor está a percepção de que não há clima para mudanças no país. Orsi, por outro lado, terá de convencer que seu projeto de governo representa uma renovação, mas sem cair nos discursos populistas radicais que são tão tentadores atualmente na América Latina.
Quatro semanas decisivas
As próximas semanas até a votação serão decisivas. A capacidade de ambos os candidatos de atrair votos fora de suas bases tradicionais, somada a um debate obrigatório do qual ambos os candidatos devem participar, determinará a direção e o destino da campanha.
No final do primeiro turno, havia alegria nas fileiras da coalizão e rostos preocupados entre os oponentes da FA. Alguns comemoraram com cautela, outros respiraram fundo e se dedicaram a analisar os bons números, que também não são ruins. O final é incerto e define um eleitorado não cativo muito volátil e imprevisível. Os dados não estão lançados. No momento, eles balançam nervosamente no pote.
O que parece estar claro é que, seja quem for o vencedor em novembro, o Uruguai continuará a demonstrar ao mundo seu compromisso com a democracia e a estabilidade institucional.
*Texto originalmente publicado em Diálogo Político
Autor
Jornalista, analista, estrategista político e pintor. Diretor de Comunicação Estratégica do Centro de Estudos da Realidade Económica e Social. Autor dos livros “O Positivo” (2014) e “A Liberdade Responsável” (2022).