Co-autor Marco Schneider
A vida humana é baseada na credibilidade dos mensageiros que disseminam mensagens e cujo sentido depende do conhecimento prévio daqueles que as recebem. Não é que nós vivíamos na era da verdade e agora vivemos na era da mentira. A diferença é que hoje vivemos em uma sociedade na qual o poder de divulgar mensagens e declará-las verdadeiras foi massificado graças à interação oferecida pela rede digital.
Esta rede, que em seu início foi considerada um desafio para os poderes centralizados, criou novos oligopólios acima dos centros políticos e legais, ditando suas próprias regras do jogo. A anti-ciência, o negacionismo climático, as teorias da conspiração ou o discurso do ódio nada mais são do que velhos fenômenos atualizados em novas modalidades e cuja dimensão nos levou a situações perturbadoras, tanto em regimes democráticos como autocráticos.
Quem envia uma mensagem pode fazê-la acreditando honestamente que o que diz é verdade. Mas o emissor pode não só comunicar algo falso, mas também tentar prejudicar o receptor, ou seja, mentir. O lugar do qual a veracidade é julgada é um lugar de poder e quem ocupa esse lugar pode cair na tentação de abusar desse poder para enganar o outro, excluindo-o de sua capacidade crítica e até mesmo a sua eliminação. Neste contexto, viver na era da pós-verdade significa ter consciência da precariedade da comunicação humana, tanto com respeito ao erro como à mentira.
Esta nova era nos levou a viver no meio de alucinações coletivas, hedonistas e niilistas, mudas ou ignorantes, mediadas por muito investimento em tecnologia da informação, comunicação, vigilância, mineração de dados e publicidade em massa. Informação personalizada, centrada no consumo de bens e experiências ou serviços tarifados, para projetos de vida de classe média que são banais e inviáveis para a maioria dos sonhadores.
Desta forma, a pós-verdade atualiza como uma farsa as tragédias da antiguidade, quando pensar num mundo melhor era impossível em termos racionais a curto ou médio prazo. Hoje, esta tragédia se repete como uma farsa, porque as condições materiais e culturais para a melhoria social, modesta e universal estão em vigor há pelo menos um século. Mas a lógica sistêmica do capitalismo torna o possível impossível.
Podemos superar a pós-verdade sem nos desconectarmos?
A pós-verdade não é um problema de indivíduos isolados, é um problema cultural, coletivo, social. E a desconexão, em uma escala social, não é possível nem desejável. A questão é então o que fazer com uma determinada cultura de conexão. Trata-se de combater legalmente o controle oligopólico e corporativo de fluxos, tempos, conteúdos e acessos, enquanto se promove a alfabetização midiática e informacional em larga escala e, em particular, a competência crítica em informação.
A raiz do problema não está na conexão, concebida em termos gerais e abstratos, mas na desconexão conectada, ou na conexão alienada, expropriada pela comunicação corporativa, ideologia neoliberal e espionagem. A pós-verdade é então, nesta chave analítica, o nome sintético para as atuais modalidades de alienação – entendida como a expropriação de alguém por outro – globalmente interconectada pela desinformação digital em rede.
Esta alienação ocorre quando se expropriam a terra, o corpo, o pensamento e as ferramentas do indivíduo e se privatiza o comum. Hoje em dia, além de tudo, os dados e traços digitais são alienados na escala do big data. Estes dados, obtidos após cuidadosa vigilância, guiadas por fins econômicos mercantis e objetivos políticos de um tenor predominantemente neoliberal, retornam semioticamente de forma personalizada, mas em escala maciça na forma de publicidade, propaganda e notícias falsas, forjando em grande parte a pós-verdade.
Particularidades na América Latina?
Na América Latina, a manifestação mais preocupante da pós-verdade tem sido o “lawfare” que opera a serviço dos interesses do grande capital. Assim se conhece a ação programada e conjunta de setores do poder judiciário e legislativo, juntamente com certos meios de comunicação corporativos, para mobilizar a opinião pública através da saturação de notícias ideologicamente tendenciosas contra as lideranças populares que vão contra seus interesses.
A derrubada de governos populares de centro-esquerda sem intervenção militar tem sido um fenômeno repetido na América Latina na última década, como no caso de Honduras, Equador, Bolívia ou Brasil. No caso do Brasil, em particular, foi forjada uma imagem pública violenta contra o PT (Partido dos Trabalhadores) que não corresponde aos fatos.
O apelido distorcido – “kit gay” – dado a um panfleto preparado pelo último governo do PT com o objetivo de prevenir a homofobia entre os adultos, procurou estabelecer a ideia de que ele incentivava a homossexualidade infantil. Mas ainda mais grave foi a campanha para associar a imagem do PT com a do partido da corrupção, quando os dados mostraram que os crimes tinham sido muito menores do que os dos partidos acusadores.
Esta distorção na percepção pública dos fatos serviu de terreno fértil para o golpe contra Dilma Rousseff e a prisão de Lula. A razão legal dada para o impeachment de Rousseff, as supostas “pedaladas fiscais”, além de insuficientemente comprovadas, tinham sido uma prática contábil comum de todos os governos pós-ditadura no Brasil. E a proibição da candidatura de Lula para as eleições de 2018, que acaba de ser oficialmente desmascarada pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, permitiu o triunfo do atual governante do país.
Em 2016, o Dicionário Oxford entronizou o neologismo pós-verdade como palavra do ano, pois foi o termo usado para tentar descrever fenômenos inesperados como Brexit ou a vitória de Donald Trump. O fato de que as crenças influenciam a opinião pública mais do que evidências ou argumentos racionais é um fato antigo. A novidade da pós-verdade, como novo modo multifacetado de engano, é a mediação sociotécnica de fluxos de desinformação cuja velocidade, ubiquidade, capilaridade e custo relativamente baixo, desde a captura e extração de dados até a circulação de informações, não tem precedentes.
Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Marco Schneider é pesquisador do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e Professor de Comunicação da Univ. Federal Fluminense (UFF). D. em Ciências da Comunicação pela Univ. de São Paulo.
Autor
Filósofo e pesquisador em Ciências da Informação. Professor da Universidade da Mídia de Stuttgart (Alemanha). Doutor em Filosofia pela Univ. de Düsseldorf. Pós-doutorado na Universidad de Stuttgart. Especializado em ética da informação.